Um país espiado é um país sem liberdade

A citação tornou-se famosa e foi relembrada nos últimos dias devido à revelação dos extensivos programas de espionagem de cidadãos americanos (e não só) levada a cabo pela National Security Agency (NSA) dos Estados Unidos e revelada pelo informático Edward Snowden, um ex-analista daquela agência transformado em whistleblower, hoje escondido em parte incerta.

De facto, o que a NSA, a CIA, o FBI e a administração americana em geral parecem empenhados em fazer, segundo as suas próprias declarações, é atropelar todas as liberdades cívicas defendidas pela lei, pela Constituição e pela moral... de forma a defender a democracia americana dos ataques dos seus inimigos, com os terroristas estrangeiros à cabeça.

A citação transcrita por Peter Arnett parece tão ridícula que a sua veracidade chegou algumas vezes a ser posta em causa, mas nos últimos dias as páginas dos jornais americanos têm-se enchido de análises e comentários que contestam a acção de Snowden e que dizem precisamente isso: para defender a liberdade de que a sociedade americana se orgulha e que os seus inimigos querem destruir, é admissível ignorar os direitos de que os cidadãos gozam, contornar as leis que os defendem, dar plenos poderes para devassar a vida privada de todos os cidadãos (suspeitos ou não) a organizações secretas que não estão sujeitas a nenhum escrutínio democrático, aceitar leis secretas que ninguém pode contestar ou sequer discutir, intimidar e acusar de traição aqueles que se atrevam a mencionar a existência destas práticas, obrigar empresas a contrariar os seus códigos de conduta e a trair a relação de confiança que mantêm com os seus clientes. Para defender as liberdades dos ataques do terrorismo, as autoridades americanas não se poupam a custos nem a sacrifícos e, se necessário, estão dispostos a instalar já hoje um regime totalitário para impedir que isso possa um dia acontecer. Faz sentido?

Afinal o que fizeram as empresas?
Há imensas coisas que ainda não se perceberam ao certo sobre o programa Prism da NSA, cuja existência e objectivos Edward Snowden revelou ao jornal britânico The Guardian e ao The Washington Post. O programa, segundo os documentos apresentados por Snowden, permite que a NSA aceda, entre outros dados, ao historial de navegação, às pesquisas, ao conteúdo de mails e de chats de qualquer utilizador das empresas envolvidas. Mas o Prism é apenas um dos programas denunciados por Snowden, havendo outro, denominado Upstream, que consiste na recolha de dados directamente a partir dos cabos onde estes circulam.

Em particular, não se percebeu ainda que tipo de acesso aos seus servidores as empresas Microsoft, Yahoo, Google, Facebook, PalTalk, AOL, Skype, YouTube e Apple facultaram de facto à NSA - se é que concederam algum. O que se sabe é que esse “acesso directo” é expressamente mencionado num dos documentos da NSA divulgados por Snowden, que se refere à recolha de dados como sendo feita “directly from the servers of these U.S. Service Providers: Microsoft, Yahoo, Google, Facebook, PalTalk, AOL, Skype, YouTube, Apple.”

As empresas negam veementemente ter dado à NSA “acesso directo” aos seus servidores e tanto o Post como o Guardian viriam a refrasear de forma mais prudente as acusações, admitindo que a recolha de informação não tivesse lugar através de uma ligação directa da NSA aos servidores das empresas mas, apesar disso e dos desmentidos das empresas, continua a haver muitas razões para continuarmos preocupados.

Uma delas, só aparentemente inócua, é a enorme semelhança do conteúdo dos desmentidos e declarações de várias destas empresas. É improvável que grandes empresas com diferentes gabinetes jurídicos tenham todas chegado a formulações tão semelhantes nos seus desmentidos. A suspeita que fica é que todas elas tenham utilizado uma formulação proposta (ou imposta) por uma entidade oficial, o que sugere, de forma preocupante, um ascendente da NSA sobre estas empresas e faz recear que as suas declarações sejam menos cândidas do que gostaríamos.

Tanto o Facebook (através de Mark Zuckerberg) como a Google (através de Larry Page) disseram que só “ontem” tinham ouvido falar de “um programa chamado Prism”, o que faz pensar que talvez o conhecessem por outro nome. E ambos os empresários dizem que as suas empresas não participam “em nenhum programa que vise dar ao governo americano - ou a qualquer outro governo - acesso directo aos nossos servidores”. O que se pode pensar senão que estas empresas talvez permitam à NSA um “acesso indirecto” aos seus servidores?

A Google também garantiu que não forneceu ao governo “uma porta das traseiras para aceder a dados privados dos utilizadores”. Mas será que lhes abriu a porta da frente?

A Microsoft garantiu que não participou em nenhum “programa voluntário de segurança nacional” para recolha de informação em massa. Mas será que foi obrigada a participar, de forma não voluntária?

Existem em todas as declarações cuidadosas formulações deste tipo, que despertam mais suspeitas do que as que afastam. O conhecido especialista de segurança informática e privacidade Bruce Schneier, quando lhe perguntaram a sua opinião sobre o caso foi claro: "Eu parti do princípio de que todas essas empresas tecnológicas estavam a mentir. É a explicação mais óbvia."

A legalidade duvidosa dos programas da NSA
Apesar dos desmentidos das empresas relativos ao Prism, todas elas admitem que recebem “constantemente” ordens judiciais, emitidas por tribunais e por isso perfeitamente legais, para fornecer determinados dados que são considerados relevantes em investigações policiais ou dos serviços de informação. Da mesma maneira, várias fontes ligadas à administração americana - e o próprio presidente Barack Obama - têm tentado minimizar as revelações de Snowden, sublinhando que elas se referem a programas “legais, fiscalizados por um tribunal e autorizados pelo Congresso”.

Será o Prism legal? De facto, mesmo que o Prism faça tudo aquilo que Snowden afirma e tudo aquilo que nós receamos, é possível defender que formalmente ele é legal, já que se encontra coberto pelo Foreign Intelligence Surveillance Act (FISA), uma lei que foi emendada pelo famoso USA Patriot Act que George W. Bush fez aprovar depois do 11 de Setembro e que tem permitido todo o tipo de abusos e sido objecto de acusações de inconstitucionalidade.

Também é verdade que o Prism é fiscalizado por um tribunal, mas trata-se provavelmente do Foreign Intelligence Surveillance Court (FISC), um tribunal sui generis, criado exclusivamente para tratar dos casos cobertos pelo FISA, cujas reuniões e deliberações são secretas e, de facto, não podem ser contestadas. Quanto aos supostos escrutínio e supervisão do Congresso dos EUA, pura e simplesmente não existem, como vários congressistas que integram as comissões responsáveis pelos serviços de informações têm repetidamente denunciado. De facto, atendendo à sua natureza secreta, as actividades da NSA são objecto de briefings a comissões do Congresso, mas os participantes não podem divulgar essa informação e muito menos debatê-la no Congresso. Uma das muitas questões por esclarecer no caso Snowden é aquilo que os membros do Congresso sabiam mas calaram (por imposição legal) sobre o Prism.

Dados fornecidos “diariamente e de forma contínua”
Se não se sabe ao certo o que, ao abrigo do Prism, a NSA pediu às empresas da Internet, conhece-se em detalhe, graças ainda às denúncias de Snowden, um pedido feito à empresa de telecomunicações Verizon pelo FISC, onde este tribunal ordena à empresa que reúna e forneça à NSA e ao FBI, “diariamente e de forma contínua”, dados sobre todas as chamadas telefónicas realizadas pelos seus milhões de clientes - com exclusão do conteúdo das conversas.

A parte mais curiosa deste documento é a secção onde se determina a proibição de dar conhecimento a terceiros da existência desta ordem e do que possa ter sido obtido graças a ela. É evidente para qualquer pessoa que leia esta ordem judicial que se trata de um claro abuso de autoridade, já que os dados coligidos dizem respeito a milhões de indivíduos que não são suspeitos de ter cometido qualquer crime e não são objecto de qualquer investigação. É verdade que estes dados não estão identificados nominalmente (trata-se dos números para onde cada utilizador ligou, da localização dos interlocutores e da hora e duração da chamada e outros elementos do mesmo género) mas é evidente que a qualquer momento, uma vez de posse destes dados, a NSA pode retrospectivamente refazer a história telefónica de qualquer suspeito ou de um cidadão mais incómodo.

E nada nos impede de conjecturar que, além da Verizon e das empresas na Internet, não haja ordens semelhantes dirigidas a milhares de outras entidades, no domínio das telcomunicações ou noutros.

Em relação à garantia de que os dados assim colhidos apenas serão cruzados com as identidades reais quando alguém é suspeito, tem havido quem defenda a posição do senador republicano Lindsey Graham, que diz que, “se uma pessoa não recebe telefonemas de organizações terroristas, não tem razão para se preocupar”. Mas não é disso que se trata.

Todos os cidadãos são suspeitos
A questão é que todos os cidadãos têm direito a não ser investigados a não ser que haja fundadas razões (não apenas vagas suspeitas) para pensar que ele ou ela tenha cometido um crime. A estratégia que está a ser seguida pela NSA -  e que a administração Obama avaliza, na sequência do que foi feito pela de George W. Bush - considera que todos os cidadãos devem ser tratados como suspeitos e que toda a informação pessoal que lhes diz respeito deve ser arquivada para ser desenterrada em caso de necessidade. O potencial de abuso desta atitude é imenso e é fácil pensar o que um governo pouco escrupuloso pode fazer com esta informação. Mas mesmo no mais escrupuloso dos governos existe um imenso risco de abuso. E não se trata apenas do risco de abuso. A questão é que o anonimato, a existência de uma esfera privada - da qual fazem certamente parte os nossos telefonemas, o que procuramos na Internet ou o que escrevemos nos mails - é uma condição essencial da liberdade individual e colectiva e da própria identidade. Só podemos ser quem somos se soubermos que podemos verdadeiramente ser quem somos sem que isso constitua um risco para nós. Não é possível a paz de espírito, o atrevimento, a criatividade ou sequer a espontaneidade numa sociedade espiada.

Quando receamos estar a ser espiados (ou quando sabemos que o estamos a ser) isso coloca-nos num lugar de inferioridade, de súbditos perante um poder opressivo. Não há igualdade possível numa sociedade espiada.

Um país cujos cidadãos são espiados - ainda que essa informação apenas seja usada em caso de necessidade - não é um país livre e os seus cidadãos não são pessoas livres. É um país com medo, onde os cidadãos recearão agir, falar, ler ou escrever algo que possa desagradar aos poderes. A todos os poderes actuais e potenciais, de hoje e do futuro.

E não se pense que o facto de a informação exigida à Verizon consistir apenas em metadados reduz a importância do acto. Como escrevia há dias o guru das redes sociais Clay Shirky, “uma pesquisa de ‘Homens casados moradores em Atlanta que enviaram um SMS a outra mulher entre a meia-noite e as quatro da manhã’ só produz metadados”.

Toda a nossa vida está na Internet
De facto, as tecnologias de data mining permitem hoje extrair quantidades insuspeitadas de informação a partir de metadados deste tipo. Não há segredo que não se possa descobrir desta forma, das preferências gastronómicas às sexuais, das simpatias políticas às características comportamentais e às doenças genéticas. Snowden afirma que a NSA “está determinada a conhecer todas as conversas e o comportamento de toda a gente do mundo” e, de facto, o grande sonho da NSA parece ser o cenário do filme Minority Report, de Steven Spielberg, onde o comportamento de todos os cidadãos é escrutinado de tal forma que permite prender uma pessoa antes que ela cometa o crime que começou a planear.

A fuga de informação sobre o Prism está aliás longe de ser a primeira do género, tendo o USA Today publicado em 2006 um explosivo artigo onde afirmava que a NSA obrigava a AT&T, a Verizon e a BellSouth a fornecer-lhe dados sobre as comunicações telefónicas de dezenas de milhões de assinantes. A espionagem já vem de longe, mas o assunto morreu sem consequências visíveis.

O direito a não ser espiados
Desde há séculos que as comunicações (a correspondência primeiro, os telefones depois) têm sido objecto de uma protecção jurídica particular, porque se considera que por aí passa uma parte fundamental da nossa identidade, uma parte mais íntima do nosso ser que aquela que pode ser encontrada nas nossas gavetas. Mas espiar a nossa actividade na Internet significa espiar a nossa correspondência, os nossos telefonemas, os nossos livros, as nossas compras, a nossa ficha clínica, o nosso diário íntimo, a nossa conta bancária, os votos que pomos nas urnas nas eleições e muito mais. É por isso que é razoável exigir que a protecção dos dados relativos à nossa actividade na Internet seja garantida de forma tão rigorosa como os dados mais sensíveis e não de forma mais ligeira, como pretendem alguns, com o argumento de que na Internet não pode haver expectativa de privacidade.

A questão é que temos, todos, o direito a não ser espiados, por muito útil que fosse essa informação para a prevenção de certos riscos e por muito remota que seja a probabilidade de essa informação vir a ser consultada.

É extremamente curioso ver tantos defensores à outrance da NSA e dos seus métodos referir os ataques terroristas que o Prism e programas semelhantes terão evitado - um argumento muito contestado aliás, com muitos peritos a defender que técnicas mais respeitadores dos direitos são mais eficazes e mais baratas - sem colocar no outro prato da balança nem um único inconveniente da espionagem de cidadãos inocentes, como se eles não existissem.

Em 2009, numa entrevista à CNBC, o CEO da Google, Eric Schmidt, dizia, em resposta a uma pergunta sobre a confiança que os utilizadores podiam ter na Google como depositário de imensa informação sobre a vida privada de todos nós que, “se alguém faz alguma coisa que não quer que toda a gente saiba, provavelmente não deveria tê-lo feito” (“If you have something that you don't want anyone to know, maybe you shouldn't be doing it in the first place.”)

A implicação é clara: apenas devemos fazer, dizer, escrever e ver aquilo que não nos importamos que todos saibam sobre nós. E esta é uma das melhores definições de estado totalitário que se pode fazer.

Não é admissível que uma sociedade que respeita as liberdades - ou, simplesmente, o mais básico livre arbítrio - funcione assim e não é certamente assim que uma sociedade democrática deve funcionar.

Morais da história
A moral desta história está longe de estar escrita, mas há algumas proposições que se podem começar a enunciar. A primeira é que é inaceitável numa democracia que haja leis secretas, tribunais secretos com decisões que não podem ser contestadas, organismos com poderes discricionários mas sem nenhum escrutínio democrático, parlamentos que são impedidos de discutir o funcionamento das instituições e cidadãos mantidos propositadamente na ignorância dos actos do seu Governo.

A segunda é que, devido a todos estes vícios, há boas razões para considerar que todas estas acções da NSA e do tribunal do FISA são ilegais e inconstitucionais, por porem em causa o direito à vida privada dos cidadãos e a própria democracia, e que Snowden agiu de forma exemplar, como um verdadeiro cidadão.

A terceira é que, num mundo globalizado, a paranóia de uma minoria com sonhos totalitários na América põe em causa as nossas liberdades em todo o mundo e torna-nos vulneráveis perante o primeiro louco sem escrúpulos que deitar as mãos aos nossos dados... que estão neste momento em Washington.

A quarta é que, se não escreveu já a sua carta de protesto à administração americana, na sua qualidade de utilizador dos serviços das empresas que estão a ser pressionadas pela NSA, sente-se ao computador e comece a escrevê-la. Não foi só no 11 de Setembro que fomos todos americanos. Hoje também somos.

jvmalheiros@gmail.com

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