A chatice das sequelas

A chatice das sequelas está toda aqui: é difícil (embora não impossível) que venha a haver um melhor blockbuster americano este ano do que Além da Escuridão, mas a segunda incursão de J. J. Abrams no universo de ficção científica criado por Gene Roddenberry, a seguir ao glorioso Star Trek de 2009, acaba por se ressentir de... ser a sequela que todos esperávamos. Ou, explicando melhor: Além da Escuridão expande e enriquece o rejuvenescimento que Abrams e a sua equipa deram à saga há quatro anos, criando um “novo cânone” que permite a coexistência pacífica com a série televisiva original e as múltiplas derivações (em série e filme) que se lhe sucederam. Continua a ser um Star Trek que funciona ao mesmo tempo para os não-aficionados e para os conhecedores do universo - embora os não-Trekkies se possam sentir um bocado mais “perdidos” numa aventura que referencia directamente o segundo filme da série no grande écrã, A Ira de Khan (1982). E continua a ser um Star Trek que espelha na sua narrativa as próprias questões que se levantaram quando Abrams e companhia pegaram no touro pelos cornos.


Se no filme anterior a reinvenção do franchise se espelhava numa história de filiação, de pais e filhos que procuravam integrar-se numa linhagem, Além da Escuridão explora o assumir das responsabilidades adultas, do papel individual dentro dessa linhagem que se diria familiar. Ao levar Kirk (Chris Pine) e Spock (Zachary Quinto) a questionar noções de dever público e consciência pessoal durante a perseguição a um “traidor” à Frota Estelar (o britânico Benedict Cumberbatch) cujos actos terroristas parecem esconder uma conspiração misteriosa, Abrams está também a questionar a sua própria presença dentro do riquíssimo universo Trek, procurando justificar à luz dos “regulamentos” os “desvios” a que se entrega face ao cânone. Tudo no seu devido lugar, portanto, mas já sem o efeito de surpresa que o filme anterior trazia, já a perder alguma espontaneidade, já a começar a sofrer com a necessidade de responder ao caderno de encargos (como, por exemplo, um 3D que, se não incomoda, também não adianta). Ainda por cima, com Abrams a “mudar de campo” para relançar a saga da Guerra das Estrelas, é legítimo duvidar que o franchise que Além da Escuridão deixa tão claramente montado para continuar sem ele consiga manter a inteligência e a frescura que o cineasta lhe soube trazer.

Dito isto, fossem todos os blockbusters que hoje se produzem nos EUA tão certeiros como este, impecavelmente gerido na sua gloriosamente assumida inscrição na linhagem das space operas e do cinema de aventuras clássico, e o cinema popular de Hollywood não andaria com tão má reputação

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