E o que resta de Deus?

Amos Oz é um escritor imenso e um ser humano desde sempre envolvido na história de Israel. Nasceu em 1939, em Jerusalém, pouco antes da sua assunção como estado. Um dos fundadores do movimento Peace Now, advoga a solução de dois estados, que só pode assentar num compromisso doloroso das partes. Será possível?

Autor do emblemático História de Amor e Trevas (e de muitos outros, como Uma Pantera na Cave, em que o ficcional é, como escreve Coetzee, reescrita de si mesmo desde criança, de criação futura de si, o que encaixa perfeitamente no pensamento judaico). Em Cenas da Vida de Aldeia, Adel, estudante árabe da Universidade de Haifa, interrompe o curso para escrever um livro sobre árabes e judeus, uma comparação: “Sobre nós? Sobre vocês e sobre nós (...). Para mostrar o nosso lado mau? Não é assim tão mau. Diria antes infeliz. E o vosso? Não é infeliz? Também é infeliz (...). Então não há diferença entre nós e vocês? Há uma pequena diferença (...). Nós e vocês somos a causa da nossa infelicidade. Mas a vossa vem da alma. Ou do coração. É difícil saber. Tem a ver convosco. É uma infelicidade que vem de dentro. Do fundo do vosso ser.” Adel aloja-se nos fundos da casa de Raquel Franco, viúva e professora, e do pai, o ex-deputado do Knesset, Pessach Keden, que o hostiliza.

Amos Oz sempre foi mais próximo de Tchékhov do que de Shakespeare. Como nas peças de Tchékhov, em Cenas da Vida na Aldeia o palco não encerra cheio de cadáveres, antes arrasta um travo residual de desilusão, de amargura, de certa infelicidade. Porém, as personagens ficam vivas. Mesmo se sonambulamente. Como ruínas de um sonho que a realidade de(se)ncantou. Sufocante o ar que (não) se respira e cuja contiguidade com Kafka parece levar a melhor na construção de uma aldeia fictícia, Tel Ilan.

O desenrolar do pais — Israel — permeia o que Amos Oz escreve sem que isso subsuma o seu ser literário numa qualquer tese. Não é uma prótese, é o fermento. Mesmo o que aparenta ser alegoria, e será, encerra uma urdidura literária perfeita, e é isso que mais se faz sentir — nem o alegórico nem a convocação de passos da História levam a melhor. Estes irrealizam-se na produção de um mundo próprio. Arrebatador, inquietante. O que agarra o leitor é a manipulação dos trâmites desse mesmo mundo, em que tudo fica sempre em aberto. Sucessão de capítulos entrelaçados que nos imergem num reino do maravilhoso, deceptivo, nocturno, colocando no leitor o desconforto de ficar em perda também ele, repetidamente, já que o quadro seguinte não explica nada, relança, diferindo sempre o enigma aberto. É o rasto de tudo isto que se avoluma até ao “grande” final, inesperado, apocalíptico.

A figura deste livro é a de uma filigrana. Desenhada gota a gota, delicadamente, com mestria, na aparência com poucos recursos, medindo bem as pontas que deixa à solta. E as que retoma. A incompletude é aliás uma recorrência que (in)define capítulos, características e comportamentos das personagens.

O palco de tudo isto? Tel Ilan, uma vila, fictícia, qual Provença em Israel ou mesmo Toscânia, no dizer de um promotor imobiliário (a ironia é uma marca de Oz, até na observação precisa e impiedosa das personagens e da geografia alterada); Tel Ilan, que fora área de pomares, plantações e vinhas lavradas por famílias de pioneiros e descendentes, vê as casas a serem abatidas para darem lugar a vivendas modernas de vários andares com jardins, cornijas e alpendres, restaurantes gourmet e ateliers de artistas, erguidos por mão-de-obra emigrante. Romenos, paquistaneses. Guardam-se os nomes: Rua da Sinagoga, Jardim da Memória, Jardim dos Pioneiros, Rua dos Fundadores, Rua 1929. No espaço, de novo animais. Exacerbada a sua presença doentia, réptil. Invisível e assustador o chacal que se ouve, em segundo plano, à noite, distante.

Aqui todos se conhecem e se cruzam: irrompem num dado momento, centram uma cena, subtraem-se de seguida, deixando sempre no ar o inexplicado. Reúnem-se no penúltimo capítulo, em casa dos Levin, para uma sessão de canções do tempo da guerra da independência que vão encobrir o barulho dos caças que regressam de um ataque a Gaza, mas o momento não se presta a políticas. Presente está Zelnik, que decidira viver com a mãe, de 90 anos, depois de a mulher ter ido visitar a San Diego a melhor amiga e não ter voltado. Também a mulher de Beni Avni, presidente da Junta de Freguesia, um dia desaparece, misteriosamente. Pede a Adel que lhe entregue uma carta. Não sabemos mais. Gili Steiner, médica, espera o sobrinho que virá num autocarro — mas não vem. O casaco deixado num assento será dele, ou não. Raquel Franco, professora de literatura que se interroga, como outros, sobre a razão de continuar naquela aldeia centenária, vive com o velho e mal humorado pai cujas memórias vai escrevendo. Este e o jovem árabe que alojam são os únicos que ouvem à noite um ruído a escavar o chão da casa. Yossi, agente imobiliário, é habitado pela angústia que vive nele sem ele mas a que não pode não obedecer (vários são os que agem habitados por esse impulso sem rosto): vai visitar a “Ruína”, casa centenária, única, que ele conheceu em criança quando era sólida e que pretendia demolir. Pertencera a Eldad Rubin, escritor consagrado cuja obra que ninguém lia se criara sobre os horrores da Shoah. Um dia, impelido pela tal força, toca à porta. Está a neta, que o faz entrar e o leva a afundar-se pelos interstícios sem fim daquela casa. Ele vai avançando pelas caves e por dentro do escuro. Entre os dois, uma das cenas mais perturbantes do livro.

O último capítulo, encerrando o círculo, espiral por natureza sem fim, é uma profecia? Passada ou futura? Cenas da Vida na Aldeia é um grande livro. Isto é: sobressalta-nos para além do fim.

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