Saudemos o regresso às salas portuguesas de Jean-Claude Brisseau, um dos mais singulares mas também, digamos, “esquecidos”, cineastas franceses contemporâneos. Com um filme magnífico, A Rapariga de Parte Nenhuma, tão magnífico como simples, discreto, subtil, despido de “ganchos” e outros atributos auto-propagandísticos. Menos ainda do que na trilogia com que por cá Brisseau se tornou mais conhecido (As Coisas Secretas, Os Anjos Exterminadores e À Aventura, este último editado apenas em DVD sem passagem pelos cinemas), que com a sua tónica no “desejo feminino” não deixava de oferecer alguma “sensação”. Nada disso - ou muito pouco disso - em A Rapariga de Parte Nenhuma, objecto artesanal quase amador: rodado praticamente num só décor, que por acaso (ou por acaso nenhum) é o apartamento do próprio Brisseau, com uma equipa reduzida e meia-dúzia de actores, sendo que a equipa e os actores mal se distinguem (Brisseau interpreta o protagonista, e a “rapariga de parte nenhuma”, Virginie Legeay, também é creditada como assistente de realização). Traz algum pedigree festivaleiro: ganhou o Leopardo de Ouro em Locarno 2012, prémio atribuido por um júri presidido por Apichatpong Weerasethakul.
Apichatpong está, em todos os sentidos, bem longe de Brisseau, mas nem custa imaginar que se tenha sentido próximo deste filme: também aqui, como nos filmes do tailandês, há fantasmas e fantasias, um vivido e um imaginado filmados sem definição estanque, um imaginário mitológico que se materializa em pleno quotidiano realista. Mas isso é o fim do filme. Que começa quando a casa do solitário e viúvo Brisseau, intelectual cinéfilo com as estantes pejadas de DVDs (haverá tendência, por todas as razões, a ver na personagem um duplo do realizador, o que será tão verdadeiro como irrelevante), chega uma rapariga ensanguentada que não tem eira nem beira. Vem de parte nenhuma, nem tem parte nenhuma para onde ir. O velho solitário acolhe-a, com reserva primeiro, com genuína afecção depois de algum tempo. Ela desafia-o (como se, jogando com as armas femininas, “desafiasse” também o erotismo da trilogia anterior), abandona-o, depois volta. Começam os fantasmas. Brisseau vê nela a recordação da mulher, morta vai para 29 anos. Uma pequena gota hitchcockiana de sabor a Vertigo começa a insinuar-se - será esta rapariga a “reencarnação” dessa mulher? Pouca importa se sim, a hipótese é suficiente para o jogo de fantasmas que entre eles se estabelece e que constitui a base da relação e do entendimento. Também com o seu quê de pigmaleónico: ele precisa dela para conseguir voltar a escrever, e quando o livro está pronto atribui-lhe a co-autoria. Mas se isto tem sabor a Vertigo há outro filme de Hitchcock que é explicitamente nomeado: num raro passeio pela rua, a personagem de Brisseau é interpelada por uma antiga aluna do liceu, que lhe menciona as aulas “sobre Psico e os filmes de John Ford”. Pouco depois, na primeira incursão por um sobrenatural muito Cocteau (como já nas Coisas Secretas), um pequeno “anjo exterminador” muito branco passa pelo ecran como um flash, e o movimento parece quase um citação de Psico. O que não é importante; o importante é que esse momento marca aquilo que Brisseau é verdadeiramente singular (e que o aproxima, efectivamente, de Hitchcock): a associação entre o medo e a beleza, como se uma coisa implicasse a outra, e a outra não o fosse sem a primeira última meia-hora de A Rapariga de Parte Nenhuma é assim, alucinante, entre o que mete medo e a profunda beleza (plástica, figurativa) do que materializa esse medo. A morte, ela própria, variação sobre a antropomorfia clássica: aquela mulher envolta num manto preto, com a luz do sol que entra pela janela a dar-lhe pelas costas, é assombrosa. Desde Bergman que não se filmava a morte assim. Melhor ainda do que Bergman.
Prodigioso na sua construção dramática, com imenso Mahler vindo de nulle part na banda sonora, A Rapariga de Parte Nenhuma é um belíssimo conto outonal, história muito delicada e ao mesmo tempo muito dura de um homem no fim da vida, entre as suas recordações e as suas fantasias, consubstanciadas em cinema, arcaico, alimentado por mitologias várias vindas do fundo dos tempos. Poderoso, emocionante, belíssimo.