O constante ruído relativo à condição atual do país faz-nos bradar por um herói. Por um paladino que apresente todas as soluções.
Enquanto Ele não chega, decidi rever um filme que nos apresentou alguém cuja história de vida alcançou o estatuto de intemporal.
É redundante afirmar que “Belarmino” é um filme que marca uma geração do cinema português. É supérfluo referir a estilização do cinema que Fernando Lopes instaurou ao optar pelo “cinema-direto”.
A apropriação da Nouvelle Vague é percetível nas imagens que deixam o espectador em suspenso, nas fotografias que o realizador “tira” ao combate, no plano aberto utilizado para a corrida olímpica de Belarmino (transmitindo a mesma tensão que, anos mais tarde, Lopes utilizaria para a cena da charrete em “Uma Abelha na Chuva”), na “espécie de campo-contra campo” utilizada para transmitir reações ao discurso, na lenta passagem do tempo enquanto o ex-engraxador de sapatos está sentado, no café, a colorir as fotografias e postais.
O retrato neorrealista é igualmente pertinaz. A luta pela sobrevivência a que assistimos fora do ringue é sintoma de uma sociedade que se alimentava da ignorância e da fragilidade da condição humana imposta. A corrupção e o aproveitamento mafioso da modalidade são os principais motivos apontados por Belarmino para a decadência e consequente óbito do boxe português. Assim é apresentado o desporto. Assim era criticada uma nação nos anos 60. Uma nação que continua enferma, quase 50 anos depois.
Belarmino “podia ter sido um grande pugilista, talvez até dos melhores da Europa”. Esta premissa, introduzida no início do filme, auspicia o seu real foco: o combate interior entre a realidade e o sonho, entre a necessidade e o desejo.
Belarmino Fragoso é um homem orgulhoso por ter a 3.ª classe (habilitação alcançada já na idade adulta). É alguém que afirma que passar uma noite ou outra sem jantar não é passar fome. Um homem que explica que não há lugar para a vergonha pessoal quando o objetivo é ganhar dinheiro para alimentar a família. Que assume com o queixo bem levantado a amizade com prostitutas e ladrões porque não avalia pessoas pelas profissões. Um "bon vivant" com um sorriso trocista e uma resposta pronta. A agressividade do entrevistador não o intimida. Está habituado a levar socos, a proteger-se atacando o adversário. A sinceridade, por vezes mascarada de arrogância, aliada à mágoa de um futuro que nunca chegou a conhecer.
Outra marca do caráter introspetivo que paira sobre o homem-personagem Belarmino é o seu isolamento quase constante. As imagens com a família são breves, similitude do tempo que este “homem vadio” passa em casa. Treina sozinho a maior parte do tempo, afastado dos outros boxeurs “oficiais” de camisola às riscas, apesar de partilhar o mesmo espaço.
"Last, but definitely not least", a música composta por Manuel Jorge Veloso e a envolvente presença do Conjunto Hot Club (Jean-Pierre Gebler vai personificar um breve episódio de amor "à la française") transportam o espectador para o ambiente intimista e sensual do jazz.
A história deste homem era digna de ser registada em película. E foi isso que Fernando Lopes fez, assim que conheceu a metáfora viva da capital e do país que era Belarmino Fragoso. E a Arte agradece, incondicionalmente.