Realizada com o apoio das Galerias Municipais de Lisboa, Casa, de Manuel João Vieira, é uma exposição que convoca uma série de questões, narrativas e memórias com um desembaraço pouco habitual no contexto da arte contemporânea portuguesa. Para começar, não se trata exclusivamente de uma exposição de objectos, inclui também ensaios musicais com JP Simões, Filipe Mendes, os Irmãos Catita, entre outros. Ou seja, as obras da actividade pictórica e musical coexistem no mesmo espaço, sublinhando, diante do espectador menos atento, a existência de um fazer que não se restringe a uma expressão artística. Há, por isso, em Casa, uma intenção semelhante à que caracterizava Monkey Business, de João Paulo Feliciano (apresentada, faz agora um ano, na Galeria Cristina Guerra): dar uma visão global ou mais alargada de um percurso. Mas as comparações terminam aqui, pois a exposição de Manuel João Viera não tem uma (declarada) intenção comercial e, sobretudo, confunde-se com a vida do artista, com sua presença orgânica. Dito de outro modo, não mostra apenas, também é. O mentor dos Ena Pá 2000 transpôs o seu atelier para o Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, instalando todo o mobiliário e respectivo recheio dentro de uma estrutura construída em ripas de madeira e à escala de um por um. Pode-se, assim, espreitar o artista na sua nova e provisória habitação (a exposição termina no dia 7 de Abril), a tocar piano, a escrever ao computador, a pintar, a comer. E se a curiosidade derrotar o pudor, nada nos impede de entrar, de percorrer todas as assoalhadas e conversar com Manuel João Vieira (se este não tiver saído para almoçar ou dar aulas).Autorizada a entrada nos quartos, espreitam-se as prateleiras, olham-se desenhos recentes sobre um estirador, descobrem-se telas cuidadosamente encostadas a mesas ou penduradas nas ripas. Uma biografia constrói-se aos olhos de quem percorre a casa: a passagem pelo grupo Movimento Homeostético (em fotografias e obras), o trabalho na ilustração, o gosto pela pintura e o desenho, os trabalhos com a assinatura de Orgasmo Carlos, a música pop. Advinha-se igualmente um trabalho de encenação na disposição dos objectos, no palco que é a estrutura de madeira (construída por um cenógrafo) e nos gestos quotidianos. O que faz perguntar: qual das personas que ali moram é a mais real? A do vocalista dos Ena Pá 2000? A do artista concentrado no seu ofício? A do professor? Não há respostas, apenas uma performance que a dada altura tropeça em duas peças: num dos quartos, um televisor passa em loop representações do artista segundo Hollywood (o louco, o boémio, o fleumático); noutra assoalhada, num pequeno vídeo, é o próprio Manuel João Viera que troça do talk-show e dos lugares-comuns da arte, da política, da cultura. Da seriedade passamos ao humor, da crítica conceptual à sátira, da artista isolado ao artista em grupo. Nestes termos, não obstante o desconcerto e a ironia, a proposta de Casa surge familiar e, por isso, pouco surpreendente. Porque a força da sua provocação reside não naquilo que mostra (os filmes, em particular), mas naquilo que é ou quer ser: a arte como pura actividade de um corpo que come, pinta, trabalha, fala, respira.
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