Nos últimos anos, Jacques Audiard tem sido um dos principais intérpretes de um modelo de realismo, rugoso e assombrado, que tem larga escola no cinema francês. Nos seus melhores filmes, como De Tanto Bater o Meu Coração Parou ou Um Profeta, imediatamente anteriores a este que agora estreia, a vitalidade da inscrição dentro desse modelo era acompanhada por uma quase agressiva recusa de qualquer sentimentalismo, através de personagens (e actores) sempre em fuga e em desafio (à câmara, por exemplo), como se a questão também fosse, para Audiard, o encontro de um ponto-limite, a descoberta do momento em que se torna impossível continuar a seguir as suas personagens. Sentimos alguma falta disso em Ferrugem e Osso, filme em que estas qualidades nos parecem mitigadas pela imposição de uma psicologia sentimental trazida pelo facto de, desta vez, Audiard trabalhar o retrato de um casal. Pouco ortodoxo, mas um casal. E ao contrário das outras vezes, o objectivo não é encontrar o limite e a impossibilidade, mas o seu exacto oposto: o filme termina no exacto momento em que o casal se torna possível.
O casal é formado por Marion Cotillard e Mathias Schoenaerts. Ela treina orcas num zoomarine qualquer, ele é um kickboxer meio abrutalhado (o tipo de personagem que podia ser interpretado por um jovem Gérard Depardieu). Conhecem-se numa discoteca onde ele trabalha como porteiro, no princípio do filme, numa bela cena nocturna feita de sedução “a contrario”. Depois há um acidente no zoomarine, e a rapariga perde as pernas, amputadas abaixo do joelho. É aí que o filme verdadeiramente começa. Como história de recomposição, de “regresso à vida”. As melhores cenas são aquelas em que Schoenarts, nos seus modos pragmáticos e lacónicos, arranca Cotillard da masmorra mental em que o acidente a enfiou - as cenas na praia, a redescoberta do mar e do sol. Ou, ainda ao sol do sul de França, aquele breve momento em que Cotillard, no terraço, reaprende os movimentos, como que vindos do fundo de si mesma, que usava para orientar a orca, e que são como os movimentos de uma dança na discoteca. É bonito, isso, como é bonito quase tudo o que tem a ver com essa pulsão vital a manifestar-se depois do infortúnio, num registo que é em simultâneo seco e exaltado, dois termos difíceis de conciliar. Não obstante, nenhuma das personagens é tão interessante como as dos outros filmes de Audiard que citámos ao princípio, e a maneira como o filme se conduz, a partir de certa altura, exclusivamente em torno da relação entre elas, não parece resolvida de forma tão entusiasmante como o princípio prometia - entra uma espécie de indiferença, falha de intensidade, que lembra mais os últimos Téchinés (o que não é um elogio) do que o melhor de Audiard. É ainda um filme que vale a pena ver - pelos actores, ou pelo inteligente uso do CGI (a falta de pernas de Cotillard) num registo absolutamente realista - mas no fim de contas algo decepcionante.