Coração de D. Pedro IV está guardado a cinco chaves no Porto e precisa de mil cuidados
São precisas seis pessoas para chegar até ao coração, numa operação que implica sempre riscos para a relíquia. Cientistas brasileiros pretendem fazer biópsia ao coração de D. Pedro IV.
A descrição foi feita à Lusa por Ribeiro da Silva, historiador e mesário da Ordem da Lapa, alertando para a fragilidade do coração do “Rei Soldado”, que morreu em Queluz em Setembro de 1834 e chegou ao Porto em Fevereiro de 1835. “Não podemos vê-lo, porque o coração é órgão frágil e este tem muitos anos. Receamos que possa estar em estado precário. As operações são muito complexas, tudo isso agita muito e temos receio de um mau resultado. Tentamos que se abra o menos possível”, observou o professor, em entrevista à Lusa.
O alerta refere-se também à eventual necessidade de “partir o vidro” para chegar ao coração doado à cidade devido à gratidão pela resistência do Porto na luta das forças liberais contra as tropas absolutistas de D. Miguel, irmão de D. Pedro IV. “Por aquilo que me informou um mesário que já faleceu, aquilo está de tal maneira que não é fácil tirar a tampa. É um problema acrescido que se vai ter um dia”, observou.
Por tudo isto, parece difícil levar o coração para o Brasil, como é intenção de cientistas brasileiros, que pretendem fazer-lhe uma biópsia para detectar eventuais doenças no miocárdio, inclusivamente as provocadas por processos infecciosos noutros órgãos.
“Não me parece muito fácil”, avisa Ribeiro da Silva.
Um investigador da Universidade de São Paulo disse à Lusa ter sido retirado um “micro pedaço” de um osso da mão dos restos mortais de D. Pedro IV, a partir do qual se tentará obter ADN, salientando que o acesso a “um pequeno fragmento do coração ajudaria no processo” e prometendo o seu regresso ao Porto.
“Sempre que vinha ao Porto uma alta patente brasileira ou o presidente do Brasil, vinham ver o coração. Agora, mesmo que venham, tem de haver alguma parcimónia”, sustenta o mesário da Ordem da Lapa há 15 anos. “Não podemos estar a abrir a cada ano porque podemos ter um desgosto e não queremos que isso aconteça”, alerta.
Chegar até coração implica remover a pesada placa de cobre pregada na porta de madeira que fecha o monumento, usar uma chave de cerca de 15 centímetros e outras quatro até passar a grade onde estão a urna, o estojo e o vaso de prata dourada com o recipiente de vidro que conserva o coração em formol. “É preciso mobilizar seis pessoas para o tirar em segurança. É uma operação que exige preparação”, descreveu o historiador, relatando o que observou em 2009, na mais recente “revisão” à conservação do órgão.
Na altura, o professor de anatomia convidado para fazer a análise indicou alguma “segurança” quanto à conservação “pelo menos nos próximos dez anos”, acrescentou. “É um coração. Achei que estava um bocadinho dilatado, não me parece que esteticamente seja uma coisa muito famosa. Mas estas coisas têm um significado para além da estética e esse é que é o significado profundo”, descreve o Ribeiro da Silva. Na ocasião, foram recolhidas imagens que mostram que a doação foi mesmo literal. Essas imagens estão disponíveis no Youtube e nos sites da Câmara do Porto e da TV Porto.
Autenticidade da relíquia nunca foi posta em causa
A autenticidade do coração de D. Pedro IV nunca esteve em causa, mas foi longo e conturbado o percurso que levou o órgão doado ao Porto até ao monumento onde está desde 1837, na igreja da Lapa. “Depois da morte de D. Pedro, em Setembro de 1834, a sua mulher, D. Amélia, fez encerrar o coração num escrínio (uma espécie de vaso, ou guarda-jóias) com duas tampas e entregou-o ao ajudante de campo do rei que veio de Lisboa para o Porto num navio”, descreveu à Lusa Ribeiro da Silva. O coração chegou ao Porto em Fevereiro de 1835, quase cinco meses após a morte do monarca, foi “em procissão da Ribeira para a Lapa” e “toda a cidade esteve presente”, acrescentou.
“D. Pedro ofereceu o coração ao Porto porque viveu aqui durante os meses do Cerco do Porto [entre Julho de 1832 e Agosto de 1833] e houve entre ele e a população uma cumplicidade enorme”, assegurou o professor. “Foi um gesto único na história de Portugal”, destacou.
Para o historiador, não se tratou de amor à primeira vista: “No início a cidade não aderiu em massa, mas depois o rei deu provas de grande abnegação e grande heroicidade e o povo simpatizou imenso com ele”, justificou.
O coração chegou à Lapa numa urna de madeira de mogno, dentro da qual estava um estojo (o original foi a única peça substituída, mas mantêm-se na igreja) e, lá dentro, um vaso de prata dourada com duas tampas. “Uma era uma espécie de adorno e a outra, presa com parafusos, dava acesso ao coração, inserido em líquidos conservantes desde a primeira hora”, descreve o mesário. Na altura, “os professores da escola médico-cirúrgica entenderam que o coração ficaria melhor conservado num recipiente de vidro, por se tratar de um material mais estanque do que a prata.
Seguiram-se “dois anos de espera” para a Câmara do Porto e a Irmandade da Lapa “chegarem a acordo sobre sítio onde devia ficar o monumento”, período durante o qual o coração “ficou na capela-mor à guarda de uma sentinela, porque havia receios de que fosse roubado”, acrescentou.
Foi edificado “do lado do evangelho por um arquitecto da câmara que tentou representar o Brasil e Portugal, as armas da Casa de Bragança e as armas militares. O granito é todo do Porto, foi escolhido o mais fino. É um ex-líbris da cidade e da igreja”, descreveu Ribeiro da Silva.
O coração foi doado à cidade e não à igreja da Lapa, motivo pelo qual foi necessário que a filha de D. Pedro, D. Maria II, resolvesse o dilema sobre o local onde devia ficar o legado, relatou. “Quando veio para o Porto, D. Pedro ficou no Palácio dos Carrancas (onde está hoje o Museu Soares dos Reis), mas era um sítio muito exposto. Teve de recolher para um mais protegido. Ficou a morar na Rua de Cedofeita, mais ou menos no local onde está hoje a esquadra da PSP”, acrescentou. A igreja próxima era a da Lapa e o seu fundador “era um brasileiro”. “Pelo menos à missa semanal vinha. Tenho visto escritos de que vinha à missa todos os dias aqui. Daí que D. Maria II quisesse que o coração ficasse aqui”, explicou o historiador.
Para Ribeiro da Silva, o coração “significou uma coisa importantíssima: o amor pela liberdade”.