Muitas marés, uma só vaga de descontentamento

Não teve a dimensão colossal anunciada pelos organizadores. Mas a manifestação que juntou multidões em várias cidades do país e que também foi marcada em Paris e em Londres mostrou que a apatia não é uma fatalidade dos portugueses.

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Lisboa Enric Vives-Rubio
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“Ainda não posso votar, portanto não posso escolher quem me governa. A ver se isto melhora, se posso ir para a faculdade”, diz a adolescente vinda das Galinheiras, um bairro social lisboeta. Ao lado, a irmã de 21 anos reduz-lhe as esperanças: talvez não haja dinheiro para isso.

Um mar de gente vinda do Marquês de Pombal continua a desaguar na enorme praça, mas há quem desmobilize e vá para casa antes da hora combinada para entoar em coro a contra-senha do 25 de Abril. Os organizadores do protesto, o movimento Que Se Lixe a Troika, anunciam no palco montado no Terreiro do Paço um cenário que as imagens aéreas das televisões desmentem: “Esta é a maior manifestação de sempre em Lisboa!”. Maior portanto do que a que organizaram a 15 de Setembro e que era, para todos, o desafio a ultrapassar. Pelas suas contas, terão estado nos protestos das dezenas de cidades portuguesas e algumas estrangeiras, como Paris, Londres e Budapeste, mais de milhão e meio de pessoas. No Twitter, diriam mais tarde que em Lisboa se juntaram 800 mil pessoas. Fora do país, Madrid foi a cidade que reuniu menos gente: só compareceram seis jovens.

Já dentro do país, mesmo nos bastiões laranja, houve centenas de pessoas na rua. “Passos e Cavaco vão ver se chove, não queremos voltar ao séc. XIX”, gritou-se em Viseu. Em Aveiro, e segundo dados da polícia, juntaram-se cinco mil pessoas. Os manifestantes concentraram-se no Largo da Estação. “Emprego, saúde e educação. Troika não” era um dos motes da marcha que terminou no Marquês de Pombal.

No Terreiro do Paço o manifesto pedindo a demissão do Governo ainda não começara a ser lido quando chegaram vários manifestantes em cadeiras de rodas. Mais atrás vem a “maré cinzenta” dos idosos, com guarda-chuvas pretos e brancos. “Roubar os reformados é crime”, entoam. Manuel e Elvira Assunção, um casal de octogenários sem filhos, espremeu-se pelos corredores apinhados do metro para poder ir ao protesto. Ela mirrada da idade, ele a sofrer as sequelas de uma tuberculose óssea na infância: “Tínhamos que vir para a luta, nem que fosse de muletas!” Diluiram-se na multidão a que o analista e constitucionalista José Fontes classifica como um grande grupo inorgânico, heterogéneo, que sabe perfeitamente porque protesta, mas não coincide nas soluções para o problema. “Há muitos a pedir a demissão do Governo, mas também há muitos para quem isso não faz sentido. Quando se diz ‘Governo para a rua’ também se está a falar do anterior governo.”

Para Fontes, são sobretudo de injustiça e de iniquidade os sentimentos que movem quem protesta, e que deixou de compreender, por falta de capacidade pedagógica dos governantes para explicar as medidas adoptadas, o objectivo de tantos sacrifícios. Hoje a meta é reduzir o défice, amanhã já é outra. “O Governo, que é muito mau na comunicação política, devia aproveitar esta manifestação a seu favor para ser mais reivindicativo com a troika. Não pode ignorar a mobilização de tantas pessoas muito para além das bases partidárias”, sugere o constitucionalista.

Os partidos fizeram, aliás, por apagar a sua presença no protesto. Era do Bloco de Esquerda o maior cartaz que desfilou em Lisboa, uma gigantesca estrutura com rodas. Mas não tinha qualquer símbolo do BE.

Foram seis “marés” e um só destino: Terreiro do Paço, onde desaguou a manifestação, ao som de Grândola Vila Morena, uma canção repetida por volta das 18h30 em muitas das capitais de distrito. As “marés” da Saúde, da Educação, dos Reformados, das Feministas, a “maré” Arco-íris ajudaram a dar ao dia de luta o carácter transversal que a organização pretendia. O sociólogo José Manuel Mendes, da Universidade de Coimbra, elogia a ideia importada de Madrid: “Dá coesão à manifestação. As pessoas sentem-se seguras. Comungam da sua causa e ao mesmo tempo têm uma causa colectiva.” Menos conseguidos, no seu entender, foram o percurso escolhido e a eficácia do protesto. “O sítio do poder por excelência é a Assembleia da República, não o Terreiro do Paço. E para terem algum impacto as manifestações têm de ter alguma tensão — o que aqui não se verificou. Quando se cantou a Grândola no Terreiro do Paço houve quem tivesse chorado, e as emoções não são boas para o trabalho político. Nem ajudam a construir um discurso de cidadania”, diz o investigador, a quem agradou a discrição da presença policial. Foi assim nas principais cidades, e o Porto não foi excepção. Aí a PSP acabou por deter dois jovens (mais tarde libertados sem acusação) que atiraram balões de tinta contra bancos e monumentos públicos, o que gerou tensão, já que muitos dos que estavam a assistir não se aperceberam do motivo que levou a polícia a agir.

“As pessoas estão preparadas para activarem comportamentos mais violentos”, analisa o sociólogo, chamando a atenção para o vernáculo que desta vez invadiu muitos dos cartazes. “Havia alguns muito duros, levados até por crianças”, assinala. Noutros casos, foram turistas a empregar uma linguagem menos púdica. “Vaffanculo Berlusconi”, lia-se num cartaz em Lisboa.

Em Coimbra, ao início da tarde Alice, de 20 meses, era, à primeira vista, a mais nova das manifestantes. Foi com o pai, Luís Marques, um psicólogo de 35 anos que sempre trabalhou a recibos verdes. Disse que as pessoas “não aguentam mais” e que, quando assim é, só há uma coisa a fazer: “Vir para a rua.”

Com mais ou menos eficácia, o dia serviu, no entender de José Manuel Mendes, para mostrar algo que há muito defende: “Os portugueses não são apáticos. Isso são efabulações.” José Fontes tem um entendimento semelhante. “Muitas das pessoas que foram para a rua votaram no PSD ou no CDS”, salienta. “Agora, o Governo pode demonstrar à troika que o povo não está adormecido”. Porque a dissolução da Assembleia da República, nota, é um cenário impossível.

O protesto deixou o executivo em silêncio. A manifestação não mereceu qualquer comentário por parte do Governo. Longe dos protestos e com uma agenda própria, o líder do PS disse haver “muitas razões” para os portugueses se manifestarem. “Têm muitas razões para estar indignados e para protestarem e exigirem uma mudança de política. As responsabilidades do PS aumentam”, disse António José Seguro numa iniciativa partidária em Arronches, Portalegre. Seguro, que elegeu o desemprego como problema central, acusou o primeiro-ministro de “inconsciência social”.

Num discurso mais duro para o executivo de Passos Coelho, os deputados do PS Pedro Nuno Santos e Duarte Cordeiro disseram esperar que as manifestações tenham como efeito a queda do Governo. “Não tenho dúvidas de que as manifestações têm um grande impacto junto de quem tem o poder. Já foi assim a 15 de Setembro, em que as manifestações derrotaram as alterações à TSÚ. Espero que esta manifestação tenha um efeito ainda maior: a queda deste Governo”, disse Pedro Nuno Santos. Para Cordeiro, a linha já foi ultrapassada: “Se o Governo se demitisse, seria positivo para o país.”

Os deputados socialistas João Galamba e Isabel Moreira (independente) também estiveram na manifestação em Lisboa. E a eurodeputada Ana Gomes repetiu a participação. “Estou aqui porque sou cidadã portuguesa e da Europa e quero lutar contra as políticas de austeridade que estão a matar o povo português e da União Europeia”, justificou a socialista. Gomes quer ver “este Governo na rua, porque não tem capacidade de se afirmar”.

A demissão do Governo tabém foi exigida pelo PCP. O eurodeputado e candidato a presidente da Câmara de Lisboa João Ferreira disse que o protesto mostra que o Governo “perdeu a legitimidade”. Acompanhado pelos deputados Miguel Tiago e Rita Rato e outros militantes comunistas na descida da Avenida da Liberdade, disse ter a certeza de que o protesto “terá consequências” e observou que “não é por acaso que se volta a entoar a Grândola, Vila Morena nas ruas de Lisboa. A leitura é partilhada pelo coordenador do BE, João Semedo, que disse ter sido “uma das maiores manifestações da democracia”. Um sinal de que “a troika e o Governo estão a mais no país”, disse. A manifestação atraiu outros ex-dirigentes bloquistas como Francisco Louçã, que entoou as palavras de ordem “Está na hora do Governo se ir embora”.

O mesmo discurso de demissão do Governo foi repetido pelo líder da CGTP-IN. “Este Governo não tem legitimidade política, moral e ética para continuar a governar”, disse Arménio Carlos.

Três horas depois de saírem do Marquês de Pombal, às 19h50, as últimas duas “marés” de Lisboa chegavam ao destino, a Praça do Comércio, de onde muita gente saiu depois de se ter cantado a Grândola. O presidente da Associação Nacional de Sargentos, Lima Coelho, não perdia a esperança: “Estas coisas têm de ter consequências.”

Com Andrea Cruz, Graça Barbosa Ribeiro, Hugo Torres, Luciano Alvarez, Maria José Santana, Mariana Oliveira, Pedro Rodrigues, Sofia Rodrigues e Victor Ferreira

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