Raspando o silêncio com Filipe Felizardo

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Sara Rafael

A velha ideia da Terra oca. A existência de universos paralelos. Um sítio do Universo onde não há universo. A visão do mundo de uma avestruz. Todas estas coisas passam pela cabeça de Filipe Felizardo, artista visual e guitarrista em ascensão na paisagem experimental portuguesa. Com elas, reivindica uma "lentidão" em ruptura profunda com o mundo apressado e da utilidade.

"Ao perceber como o mundo funciona, podes avariar um bocadinho as coisas", diz-nos Filipe, um "gajo extremamente apaixonado" que se apresenta na próxima terça-feira no Teatro Maria Matos, em Lisboa, com Margarida Garcia (contrabaixo eléctrico) e Riccardo Dillon Wanke (sintetizador). Curiosa forma de enciclopedismo, a deste artista de 27 anos com uma paixão por física quântica e outras matérias habitualmente esotéricas para quem se formou em cinema. "São leituras que vêm de ter estado a trabalhar seis anos da meia-noite às oito da manhã. Felizmente, o ordenado dava-me para comprar um livro de cada vez que acabava de ler outro." E assim sendo...: "Falaste em enciclopedismo, pode ser um bocado isso. É uma paixão enciclopédica, sempre em busca de referências que interessam, seja para o trabalho de artes visuais, seja para uma metafísica do dia-a-dia. A Terra ser oca, as coisas estarem num abismo, seja social ou metafísico... isso não me dá soluções, não me oferece conceitos completamente delineados, mas ajuda-me a ilustrar poeticamente as coisas que faço", explica.

Há nisto um elogio do inútil, do bom velho conhecimento, mas, mais importante, uma reivindicação de um tempo para criar. "A nossa vida é pequenina, mas é maravilhosa porque podemos enriquecê-la com a coisa mais estapafúrdia possível", afirma Filipe.

Desenho, fotografia e instalação à parte, é com a guitarra, que aprendeu a tocar em miúdo, que Filipe procura o seu ritmo - lento. "Essa lentidão obtém-se no tempo musical, no tempo contemplativo, que são os maiores pequenos prazeres que consegues na tal vida pequenina."

Rumo ao esqueleto

Nos últimos anos, tornou-se habitual vê-lo em formações, regulares ou ad-hoc, ou sozinho. A discografia a solo começou com Övöo e lII=207.8°, bII=-56.3° (as coordenadas do ponto do Universo onde pode haver um grande vazio), álbuns feitos de camadas e camadas de guitarra, orquestradas por via de loops e pedais de efeitos. Com Guitar Soli for The Moa and the Frog (2012), mudou o rumo: ei-lo a fazer blues lentos, espectrais, na linha do John Fahey eléctrico e de Loren Connors.

"Há dois anos, pensava que o que fazia era minimalismo, mas na verdade eram discos maximalistas, uma coisa maciça de acumulação e acumulação. Ouves um disco dos mais recentes do John Fahey e ele faz o fingerpicking e os blues com o esqueleto da canção e tu ouves o estritamente necessário para que aquilo seja a coisa mais bonita, dolorosa e exímia tecnicamente", conta.

Fahey levou-o por ali, mas também foi conduzido por outros pensadores do som. "Li coisas do Dylan Carlson [guitarrista dos Earth] a dizer que o drone pode estar numa nota quando a deixas soar e ficas a ouvir os harmónicos a pairarem", diz. "Ouves o Keith Richards a tocar depressa - ele não toca muito depressa, o que é fixe - e o facto de estares a curtir uma nota no meio de um grupo de dez faz-te mentalmente separá-la de tudo o resto. Mesmo que a música continue a decorrer, tu estás a ouvi-la sozinha no espaço, estás a ouvi-la sozinha no silêncio". A lentidão é também fruto de uma contingência: "Como não sou um guitarrista exímio, é assim que consigo saborear as notas e descobrir qual é o pathos que há numa progressão de notas."

Felizardo segue esta linha em dois novos discos a serem editados nas próximas semanas (Volume II, na Wasser Bassin, e Volume III - Sede e Morte, na 8mm). "Sinto-me bastante produtivo. Mudei de vida. Trabalhava à noite - era vigilante num parque de estacionamento - e consegui tornar-me professor de guitarra. Por isso, agora ando sempre com uma guitarra atrás de mim. Estou a praticar mais e a saborear o facto de começar a conhecer melhor o instrumento", explica.

Em Volume II - Sede e Morte (um LP de um só lado com edição agendada para Março), fez versões livres de Oh well, de Peter Green, Canção de embalar, de José Afonso, e Poor boy long way from home, de Fahey, esta última dedicada a cinco guitarristas portugueses: Manuel Mota, Pedro Gomes, Luís Lopes, Norberto Lobo e Bruno Silva. "Vê-los e ouvi-los nos últimos anos aqui em Lisboa é uma educação, caraças! São cinco guitarristas, cada um com a sua cena, com a sua linguagem, com as suas idiossincrasias."

Felizardo sabe que integra uma linhagem de guitarristas, de Fahey a Manuel Mota, para quem o silêncio e o tempo entre duas notas são tão ou mais importantes do que é dito. Foi para aí que que apontou na hora de preparar o concerto de terça-feira no Maria Matos. "Ao [compositor japonês] Toru Takemitsu não interessava o silêncio, nem o som tocado; era mais o intervalo entre o som não tocado e o som tocado, o raspar da palheta nas cordas, porque é a quebra do silêncio para a música per se. Disse-lhes [a Margarida Garcia e Riccardo Dillon Wanke]: ‘bora lá dilatar esse instante no tempo, com muita intensidade poética e muita intensidade física, do som... explorar esse grande raspar do silêncio para a música."

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