Quando As Bailarinas se estreou em França, em 1974, escreveram-se coisas muito duras na crítica. Duras e divertidas, como este naco de Jean Domarchi (um veterano dos Cahiers de capa amarela dos anos 50), comentando as incidências sexuais do filme: “Mostra, mais uma vez, que para muitos cineastas franceses o Maio de 68 foi um mero pretexto para a prática do 69”. Abstraindo-se, como mais do que seu direito é sua obrigação, da violenta barragem crítica, o “grande público” não se fez rogado: mais de 5 milhões de espectadores o foram ver, lançando Blier para uma carreira que, se não voltou a tais extremos de amor e ódio, também nunca se afastou deste padrão, fiel a uma noção de cinema popular de “prestígio” derivada da tradição da “qualidade francesa”, com resultados com imenso cheiro a mofo.
39 anos depois, vê-se por aquilo em que o tempo o tornou: uma curiosidade histórico-sociológica. O único prazer da sua descoberta vem dos actores, o frágil meteorito que se chamou Patrick Dewaere e a força da natureza que era (e continuou a ser) esse grande actor russo Gérard Depardieu, aqui no papel do seu breakthrough. Misoginíssimo filme, a única química interessante é a que se passa entre eles, ora fraternidade espalha-brasas, ora tensão de vieux couple, ora relação pai-filho. Sobre as mulheres o olhar é mais complicado, pela agressividade em wishful thinking machista (a docilidade de Miou-Miou, por tudo). Mas antes de também ela se render, a adolescente Isabelle Huppert, quando se revolta contra os pais e segue com a dupla de “bailarinas” (ou quarteto, se atendermos a que valseuses é calão para testículos), parece estar a querer começar o filme outra vez. Exploitation, com certeza, e mesmo Russ Meyer terá no currículo obras onde a “exploração” era mais complexa (e o olhar sobre as mulheres: Meyer via cúmplices onde Blier vê ameaças, c.f. a aberrante sequência, “freudiana” pois sim, com Brigitte Fossey).
As Bailarinas é evidentemente um filme de “reacção”, produto de um momento em que aquela famosa “certa tendência do cinema francês” se procurava alinhar com os tempos, que já tinham visto a “contracultura”, os “hippies” do Easy Rider, o Maio de 68 e a nouvelle vague. Blier faz a digestão disso, em pastiche zoológico onde está tudo classificado (os “marginais” e os “burgueses”) e metido numa jaula. Até os filmes: há aqui ecos de alguns Truffauts (Jules et Jim), Godards (O Acossado, Pedro o Louco), dos “selvagens” pasolinianos... que Blier devora para aniquilar. O pior é que sai tudo muito feio, e não no sentido em que aos Carabiniers de Godard, por exemplo, se pode chamar um filme “feio”. Fealdade que o tempo neutralizou, mas que é hoje - pelo que representa - o motivo do interesse de As Bailarinas. Vai-se vê-lo pela curiosidade histórica, não para descobrir em Blier o grande cineasta que ele sempre esteve longe de ser.