O destino já não passa pelo casamento e não se rompe com o divórcio
Em 2011, Marvão teve cinco divórcios e dois casamentos. Números que não fazem o retrato do concelho, diz quem lá vive. A 100 quilómetros de distância, Vila de Rei celebrou 15 casamentos no mesmo ano, levando o número de divórcios por 100 casamentos a ser o mais baixo no país: 6,7.
O recenseamento de 2011 também deu os últimos números do estado civil em Portugal: em cada 100 portugueses, 40 são solteiros, 47 são casados, sete são viúvos e seis são divorciados. No âmbito de um projecto de investigação em jornalismo computacional (REACTION), o PÚBLICO recolheu os dados sobre o estado civil de todos os censos. Recuar até ao primeiro, de 1864, é olhar para outra realidade: em 100 portugueses, 63 eram solteiros, 31 eram casados e seis eram viúvos.
Os divorciados só viriam a ser contados em 1911, eram 2685. Num século, passaram para cerca de 594 mil e a forma como se vê um divórcio mudou. Também mudou o casamento: hoje tem mais valor emocional e menos valor institucional. Assim, ao longo desse tempo, aumentaram os divórcios, diminuíram os casamentos, sobretudo os católicos.
E por trás da diminuição dos casamentos está uma geração mais urbanizada, menos tradicional, nascida entre os anos 1970 e 80. Foi ela que travou o casamento e acelerou a união de facto. "Não há hoje um destino traçado que passe obrigatoriamente pelo casamento", resume a socióloga Maria das Dores Guerreiro, professora do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL).
Conquistou-se a liberdade individual e o direito a escolher, o que não significa, no entanto, que se goste menos dos outros ou que se seja mais egoísta, pelo contrário. "As pessoas estão mais libertas, com uma proximidade mais genuína, sem sacrifícios", diz Maria João Valente Rosa, directora da Pordata.
Quisemos perceber como é que nas pequenas localidades os números se cruzam com as percepções de quem lá vive, mesmo que esses números, de um só ano, não tenham de reflectir uma tendência ou um comportamento. Fomos conhecer quem se casou e se divorciou em Marvão e Vila de Rei. E, apesar da distância que separa os dois concelhos nas estatísticas, percebemos que há mais para além disso que os aproxima.
Marvão
Mulheres casadas num piso, homens casados noutro: esta noite, cada um vai levar os seus pratos e talheres para o Grupo Desportivo Arenense, em Santo António das Areias, uma das freguesias do concelho de Marvão. É dia do Jantar das Casadas e dos Casados. A tradição já vem dos anos 40, quando um dia um grupo de homens, "à roda de um petisco de farinheiras assadas", decidiu organizar um jantar, a realizar-se no primeiro domingo a seguir ao Carnaval. As mulheres não entrariam. Nem elas, nem nenhum rapaz solteiro. Só estavam autorizados os casados da freguesia, abrindo excepção aos divorciados e viúvos, porque esses, um dia, já souberam o que é um casamento.
Mais tarde, um grupo de mulheres decidiu não ficar para trás. Eram poucas, "até porque nesse tempo não era muito comum as mulheres saírem de casa", mas também elas criaram um jantar e escolheram uma ementa. E assim será hoje.
É Emília Machado quem escreve sobre as tradições de Marvão. É funcionária da câmara, mas é também uma espécie de relações públicas no concelho. Ali conhecerá praticamente todos os habitantes: eram 3512 em 2011, segundo os Censos do Instituto Nacional de Estatística (INE). Em tempos, Marvão chegou a ter mais de 7 mil habitantes. Hoje, faltam-lhe jovens como a quase todos os municípios do interior (nasceram 20 bebés em 2011, embora 40% dos habitantes tenham mais de 60 anos).
Entre a população do concelho, 1834 pessoas são casadas. Só que no total das quatro freguesias, durante os 365 dias de 2011, houve apenas dois casamentos. É o reduzido número de casamentos, comparado com os cinco divórcios registados, que leva Marvão a ser o concelho do continente com mais divórcios por 100 casamentos (o rácio é de 250 divórcios por cada 100 casamentos, só ultrapassado pelo concelho de Nordeste nos Açores, com um rácio de 300).
Rapidamente se descobre de quem são os dois casamentos do ano: Vera e José Miguel Magro foram um deles. O outro casal foi viver para Portalegre, onde muita gente de Marvão trabalha. Vera e José recebem-nos em casa, com a filha Matilde de três meses. Vivem num dos pisos da casa dos pais de Vera, naturais de Marvão. É também uma "vantagem económica": não pagam renda e têm ajuda dos avós com a bebé. A casa fica numa pequena localidade dentro do concelho, à qual se chega por estradas estreitas passando por campos onde pastam ovelhas. Não se vê quase ninguém.
Matilde vai interrompendo a conversa dos pais e tanto um como outro estão ainda a tentar decifrar cada um dos choros da filha. "Pensámos em casar quando a vida estabilizou. Quem namora acho que tem sempre aquele sonho de casar." Namoraram 14 anos e casaram-se a 30 de Julho de 2011. Um ano antes, tinham começado a pensar no casamento. Se dá trabalho? "Bastante", diz Vera. "E qualquer coisa custa umas centenas de euros: o aluguer do espaço, o catering, os brindes", lembra José. Um ano antes, pensaram também em comprar casa em Portalegre, só que o preço fê-los mudar de ideia. "Aqui temos outra qualidade de vida. Temos mais tempo e um ordenado dá para mais."
Vera faz o caminho entre Marvão e Portalegre todos os dias. É lá que trabalha num escritório de advogados, depois de ter estudado Direito em Lisboa. José trabalha em Marvão, na área da restauração. "Aqui há trabalho, não há emprego. Há trabalho para andar no campo, não há é trabalho de secretária." Vera discorda. Até mesmo para quem não procura um "trabalho de secretária" há cada vez menos. "É uma zona rural, há uma única fábrica, há empresas pequenas. Não há perspectivas se um jovem quiser trabalhar cá."
Ambos cresceram no concelho e têm visto os amigos e conhecidos a casarem-se. "Muita gente passa por uma experiência a dois, até devido a condições económicas, e deixam o casamento para mais tarde." Deixar o casamento para mais tarde ou não casar faz parte da evolução das conjugalidades, como refere Maria das Dores Guerreiro, socióloga e professora do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL). Quem está em causa é a "geração da modernidade avançada", dos anos 1970 e 80, jovens com valores modernos, baseados em novos modelos de constituir família, que tendem a apostar na formação individual, não só académica, mas também afectiva, descreve a socióloga. Testar uma vivência a dois, "na qual a sexualidade está mais presente", faz parte das tendências.
O desemprego e a precariedade laboral ou uma formação académica mais prolongada também podem ser motivos para deixar o casamento para mais tarde, reflectindo-se na "transição mais tardia dos jovens para a vida adulta" (a idade média do casamento passou de 32 anos, em 2006, para 33 em 2012, segundo dados do Instituto dos Registos e Notariado). Já para quem decide não casar, há outros factores. Atribuir menos valor ao casamento, seja como instituição, como sacramento, contrato ou compromisso, é um deles. Outro é a liberdade individual. "Se o casamento for entendido como uma perda de liberdade, então estar sem vínculo e sem coabitação plena pode ser uma forma de a salvaguardar", diz a socióloga.
Olhar assim para o casamento é uma ruptura com o tradicionalismo dos valores, da família e do casamento, dos anos 1950 e 60 da sociedade portuguesa. Foi precisamente nessa altura, a 23 de Abril de 1955, que Maria Helena e João Lourenço se casaram. Estão juntos há 58 anos, hoje têm 78 e 84. Como é que se mantém um casamento tão longo? "Olhe, hoje arranhamo-nos, amanhã beijamo-nos. Sempre nos entendemos, um dia chateia-se um, no outro dia o outro."
São caseiros de uma quinta na encosta do Marvão, onde só se chega com indicações precisas. Ainda vão buscar água à fonte e põem-na em dois cântaros de barro, na cozinha. A casa é pequena e, mesmo à entrada, na sala onde passam grande parte dos dias, têm uma mesa redonda com uma toalha, pesada, até ao chão. Estão pouco mais de três graus e as brasas por baixo da mesa são como um íman. Nas paredes há armários de madeira, sem portas, onde as loiças de cores e tipos diferentes estão pousadas e as chávenas penduradas em pregos. Há uma ou outra moldura (de um casamento ou dos quatro netos da única filha), uma televisão e várias panelas e cafeteiras de alumínio, impecavelmente areadas, penduradas na parede. Cozinham numa divisão pequena, sem janelas: têm um forno a lenha, bancos pequenos, um carrinho com cebolas e batatas.
Hoje custa-lhes andar e o único passeio do dia-a-dia de Maria Helena é até ao "mirante", como lhe chama, um miradouro dentro da quinta, com bancos de pedra. João Lourenço, pelo contrário, ainda sobe de vez em quando à vila de Marvão, "a cavalo", ou seja, de carro. Quando se casaram, tinham pouco mais de 20 anos e, quando hoje relembram a idade, resumem tudo em duas frases: "Eu ainda sou uma criança, ele é um jovem." João corrige, "ela é uma menina". Durante anos, lavraram, cavaram, trataram da horta e da cavalariça da quinta. Em casa, era a mulher quem trabalhava. "Fazia tudo para ele poder trabalhar por fora." Mas hoje o casamento dos jovens é diferente. "Brigam e cada um vai para o seu canto. Também não vale a pena casarem-se para se separarem", diz Maria Helena. "O divórcio agora é porta sim, porta não. Por acaso eu até pensava que ninguém se divorciava aqui, mas parece que não. Eles é que sabem, é a vida deles, não somos nós que temos com isso."
É uma população "muitíssimo envelhecida" que o pároco de Marvão, Luís Marques, de 69 anos, vê no concelho. Haver menos jovens é a primeira razão que aponta para os poucos casamentos. Mas, se houvesse mais jovens, haveria mais casamentos? "Acho que já não. A culpa é da legislação que temos. É mais fácil para os jovens não casarem, porque lhes dá os mesmos direitos. Não gastam tanto dinheiro e se quiserem divorciam-se." Para o padre, o que se perde é "a célula base de toda a sociedade humana": a família. "Antigamente, quando um casal pensava no divórcio, interrogava-se quase dez vezes. Mas o divórcio entrou na vida das pessoas. Hoje é com pesar que os velhinhos nos dizem que o seu neto já se divorciou, são eles que mais sofrem."
Em 2011, registaram-se em Marvão cinco divórcios e 149 pessoas divorciadas, segundo o INE. É um número pequeno quando comparado com o total de cerca de 594 mil divorciados em todo o país (59% são mulheres, 41% são homens). Adelaide Martins, de 43 anos, é uma das pessoas divorciadas do concelho. "Nasci, cresci, fui baptizada, casei-me e divorciei-me em Porto da Espada", uma aldeia numa das quatro freguesias do concelho. É lá que está todos os fins-de-semana, escapando da cidade de Portalegre, onde trabalha, na secção de Armas e Explosivos da Polícia de Segurança Pública (PSP), e para onde foi viver quando se casou em 1996. O ex-marido era um colega de escola. "Tínhamos uns 16 anos quando nos conhecemos, namorámos quase dez." Foi também dez anos depois de se terem casado, já com uma filha de cinco, que lhe pediu o divórcio. "Havia outra. Ainda aguentei dois anos, mas não valia a pena." Nessa altura tinha 27 anos, distante daquela que é hoje a idade média do divórcio (42 anos, segundo o Instituto dos Registos e Notariado).
Até então havia um só divórcio na família. "Foi uma bomba, ninguém estava à espera. O nosso casamento era visto como exemplar porque sempre camuflei o que se estava a passar. Bem basta o que eu sofria." Os primeiros tempos não foram fáceis."Era-me difícil dormir à noite, vinha-me tudo à cabeça." Agora vive com a filha e está numa relação há três anos. Casar-se outra vez? "Não, não ia dar o mesmo passo para sofrer."
Os números de casamentos e divórcios em Marvão surpreendem José Manuel Pires, vereador da câmara. "Não se encaixam com a nossa maneira de ser aqui." Atrair população jovem é um dos objectivos que os têm levado a investir na "parte social e cultural" do concelho. "Investir num apoio ao casamento não faz sentido porque as pessoas recebem o subsídio e vão-se embora quando podem." Das opiniões que recolheu sobre os dados do INE, destaca uma. "Chamaram-me a atenção para o facto de a Conservatória ter só dois funcionários, o que pode levar as pessoas a recorrer às conservatórias vizinhas."
Assim foi com Cláudia e Rui Mimoso, de 27 e 26 anos. São ambos de Marvão, onde cresceram e se conheceram aos 16 anos. Namoraram desde então e esperaram que as vidas melhorassem para se casarem, o que aconteceu em Agosto de 2012. O registo do casamento ficou em Portalegre, apenas por uma questão prática: é lá que Cláudia trabalha. Mas viriam a casar-se na igreja da freguesia de São Salvador de Aramenha.
Cláudia e Rui surpreendem-se em saber que só houve dois casamentos em 2011. Muitos dos amigos casam-se, embora alguns ainda estejam solteiros, sobretudo rapazes. "As raparigas deslocam-se para estudar e arranjam homem fora daqui", explica Cláudia. Pelo contrário, quem não se surpreende com o número de casamentos é o fotógrafo que o casal escolheu. Nuno Borda d"Água é conhecido na zona e, para quem depende do número de casamentos para o negócio, não restam dúvidas. Se em 2006 fotografava 20 casamentos por ano, no ano passado já só foram cinco. "Há muito menos casamentos também porque há menos gente aqui", aponta.
Já o número de divórcios não desperta grande surpresa no casal e a opinião é clara. "Quem comenta o divórcio dos outros é quem não tem nada para fazer na vida." Dionísia Fernandes, de 37 anos, comprova-o. Quando um dia regressou a Santo António das Areias, aos 27, sozinha com dois filhos, ouviu muita coisa. Ninguém sabia o que tinha acontecido, mas isso não evitou que não se falasse do assunto. "Custava sempre ouvir. As pessoas comentavam: "Não tem vergonha de fugir do marido com dois filhos"?" Dionísia era vítima de violência. Tinha casado aos 21, em Marvão, onde nasceu e só então foi viver com o marido para perto de Portalegre. Quando conseguiu sair de casa, com a ajuda do irmão, regressou a casa dos pais, tinham os filhos dois e seis anos.
"Viemos com a roupa que tínhamos vestida, mais nada". Agora os filhos têm 11 e 16 anos, vivem com a mãe numa casa que entretanto conseguiu alugar. Arranjou trabalho e conseguiu ver o processo de divórcio terminado dois anos depois de ter saído de casa. Hoje é diferente: vive em união de facto há seis anos. Já quanto à ideia de voltar a casar, não tem dúvida. "Não é preciso um casamento para sermos felizes."
Contudo, os números mostram que o casamento de divorciados em Portugal tem contrariado a diminuição dos primeiros casamentos. O recasamento aumentou 52% em 15 anos, sendo os homens quem mais volta a casar após um divórcio. Conceber a hipótese de se reconstituir após um divórcio está associado ao "dilatar da vida", na opinião da demógrafa e directora da Pordata, Maria João Valente Rosa. Uma esperança média de vida maior faz com que se imaginem mais projectos. "Isto enriquece a vida de cada um. Deixa de haver a ideia de que não vale a pena dar este passo porque não tenho futuro. Sabemos que podemos ter muito futuro, que ainda há uma possibilidade e que uma relação não tem necessariamente de ser única e para a vida."
Os cinco divórcios de 2011 não são surpreendentes para quem vive em Marvão. E não vêem nesse número, nem nos dois casamentos, um retrato do concelho. Os dados de um só ano são incapazes de reflectir uma tendência. "Os comportamentos vêem-se a longo prazo", sublinha Anália Torres, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) e autora de dois livros sobre o casamento e o divórcio em Portugal. O mesmo argumento é apontado para explicar a quebra dos divórcios em Portugal em 3%, em 2011 face a 2010 (a primeira desde 2005). Muitos motivos podem estar por trás dessa oscilação: isolar um não é correcto. "A crise pode jogar nos dois sentidos", refere Maria das Dores Guerreiro, explicando que tanto pode forçar os casais a ficarem juntos, como motivar a separação ao despertar tensões. Outros motivos como a alteração nas leis do divórcio, sublinha Anália Torres, estão também geralmente associados aos movimentos bruscos, de subida ou descida, dos divórcios.
Deixar o tempo falar é o que as sociólogas sugerem. E a tradição do jantar dos casados, desta noite em Santo António das Areias, contraria os números. Lá se juntam homens e mulheres, de alguma forma ligados a um casamento. Terminados os dois jantares, vem o "ponto alto" da noite: os homens oferecem farinheira cozida às mulheres (feita pelas cozinheiras que eles contrataram), as mulheres oferecem-lhes arroz-doce. Lêem uns versos uns aos outros e a festa continua. Abrem o baile para quem quiser entrar. Até mesmo para os solteiros de outras freguesias.
Vila de Rei
Perde-se a rede no telemóvel quando se mergulha no vale onde está Água Formosa, uma aldeia de xisto no concelho de Vila de Rei. É lá que vive Celeste e José António, de 81 e 78 anos. Celeste explica tudo com detalhes, ainda por telefone: "Assim que vê a tabuleta à esquerda, vira à direita, estamos cá mesmo em baixo." E acrescenta: "Se é para falar sobre os casamentos de hoje em dia, posso dizer já que agora é tudo pela lei do ajuntamento, já poucos se casam."
Há 12 anos, deixaram Lisboa e regressaram ao sítio onde Celeste nasceu. Ir para a terra do marido em Trás-os-Montes foi posto de parte: "É tão longe de Lisboa que o meu filho nunca mais lá iria na vida." Viveram durante muitos anos em Lisboa, onde os filhos nasceram, "foram criados e casados". "Regressar à terra" era o que fazia mais sentido para os dois. Quando ali chegaram, a casa era pouco mais do que um palheiro, "arrumámos tudo o melhor que pudemos". Hoje têm a casa arranjada, uma horta, três galinhas e o som permanente da água da ribeira a correr ali perto. Estão os dois sentados lado a lado, no sofá da sala, pequena e com pouca luz, onde têm a televisão. Quase sempre se sobrepõem um ao outro quando falam: vale uma cotovelada de vez em quando para acertar o ritmo. "Agora estou a falar", diz Celeste. E se o marido se alarga mais no vocabulário, leva outra. "Deixa-me falar, mulher", é a resposta.
"Um casamento de 51 anos dá para tudo. Tem altos e baixos." Casaram-se quando Celeste tinha 30 anos, José António 27. Celeste precisou de uma semana para aceitar o pedido de namoro do futuro marido. Três meses mais tarde casaram-se porque estava quase a chegar o tempo da Quaresma e Celeste não queria que o casamento coincidisse com essa época. "Achávamos que casávamos para a vida." Hoje, sabem que é diferente. "Os jovens só se juntam, mas assim os pais também não fazem despesa."
Mesmo que só tenha sido registado um único divórcio em Vila de Rei, em 2011, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), Celeste e José António dizem que hoje os jovens se separam muito e por pouco. "Há pais para quem é um escândalo os filhos divorciarem-se." Como é também "um desgosto os filhos não se casarem".
A visão que partilham coincide com os dados do último recenseamento. O número de pessoas a viver em união de facto passou de aproximadamente 381 mil em 2001 para 730 mil em 2011. Ao mesmo tempo, a percentagem de bebés nascidos fora do casamento passou de 23,8% para 42,8% nesses dez anos (se recuarmos a 1970, era de apenas 7,2%). A idade da maioria das pessoas em união de facto está entre os 25 e os 44 anos. E, do total, 69% têm estado civil legal de solteiro.
Só que mesmo assim Vila de Rei teve 15 casamentos em 2011, levando o número de divórcios por 100 casamentos a ser o mais baixo no país (6,7). O concelho tem uma particularidade quanto ao casamento. Há 13 anos que a câmara dá um incentivo a quem se casa, com o objectivo de fixar os jovens no concelho e contrariar o envelhecimento da população (cerca de 46% dos habitantes têm mais de 60 anos). O apoio começou por ser de mil euros, actualizados para 750 no ano passado. É dado a casais, heterossexuais ou homossexuais, com uma média de idades inferior a 45 anos, mesmo que não tenham casado no concelho. O casal terá é de comprometer-se em manter a sua residência em Vila de Rei pelo menos durante cinco anos. Se não o fizer, tem de devolver o dinheiro.
Um dos requisitos da candidatura é o registo de casamento, pelo que quem esteja em união de facto não pode concorrer. "Olhamos para o casamento como a base fundamental da família, embora o objectivo seja procurar que as famílias fiquem cá", explica Paulo César, vereador da câmara. Não se fala em divórcio no regulamento e o vereador diz que nenhum dos 124 casais que o receberam se divorciou.
"Em 2011, mudámos o paradigma do incentivo. Como é mais importante o passo do primeiro filho, baixámos o apoio ao casamento." O apoio à natalidade é de 750 euros pelo primeiro filho, 1000 pelo segundo e 1250 pelo terceiro e seguintes (incluindo para casais que optem pela adopção ou que estejam em união de facto). A condição principal mantém-se: a fixação dos pais com a criança durante cinco anos. "É uma ajuda ou prémio para fazer vida aqui", diz Paulo César. A criação de emprego foi outra das medidas.
Os casais mais jovens destacam a maior importância de arranjarem emprego. "Ninguém casa com o valor do subsídio. Aceitamos de bom grado e se calhar até pode ser uma motivação para alguns, mas não é por aí", diz Sandra Carvalho (27) e Filipe Silva (30). Casaram-se em Setembro de 2011, três anos depois de se terem conhecido. Os pais de ambos eram do concelho, embora Sandra tenha nascido em Lisboa, onde estudou Gestão e Administração Pública. Candidatou-se a um concurso de arrendamento de habitação a baixo custo, lançado pela câmara (o aluguer de uma casa no concelho ronda os 250 euros) e mudou-se para Vila de Rei quando conseguiu uma casa. Há dois anos que procurava trabalho e só recentemente assinou um contrato de estágio para os próximos nove meses. Pelo contrário, Filipe fez a tropa em Lisboa e, assim que saiu, conseguiu trabalho nos bombeiros do concelho onde hoje está.
Vivem no centro da vila, num apartamento à medida dos dois e, a curto prazo, assim esperam, à medida de um filho também. Foi a falta de trabalho de Sandra que limitou esse passo. "É que as fraldas são caras", ironiza.
Casaram pela Igreja, "cá quase todos os casamentos são católicos", dizem. Só que os 15 casamentos registados nas conservatórias contrastam com os cinco casamentos católicos que o padre Manuel Nunes anotou no seu livro de registos de 2011. Significa que apenas um terço dos casamentos no concelho foram católicos.
Esse facto coincide com uma das tendências recentes. "Nos últimos dez anos, há uma mudança brutal, sobretudo porque desceram os casamentos católicos. Há uma maior diversidade de escolha da conjugalidade e são poucas as pessoas que assumem o casamento como um sacramento", sublinha a socióloga Anália Torres. De facto, em 2001, 63% dos casamentos foram católicos, 37% foram civis (num total de cerca de 58 mil casamentos). Em 2011, houve cerca de 36 mil: 39,5% foram católicos e 60,2% foram civis (as décimas que sobram representam os casamentos celebrados segundo outros ritos religiosos). Se recuarmos a anos anteriores, como 1960, então 91% dos casamentos foram católicos. Ao contrário dessa descida, o número de casamentos civis tem-se mantido sensivelmente o mesmo, numa média de 22 mil por ano, nas últimas duas décadas.
Os registos do padre Manuel Nunes, que acompanha quatro paróquias do concelho, algumas desde 1981, não têm só casamentos. No seu escritório, como lhe chama, uma grande estante de madeira ocupa toda a parede: nela estão dezenas de livros de registos de baptizados, profissões de fé, crismas, casamentos e óbitos, todos com data nas lombadas. A secretária enche-se de papéis escritos à mão. Num deles está a lista das bodas de prata e de ouro deste ano: são 22 casais juntos há 25 anos, 14 juntos há 50.
Na missa das oito horas da manhã de domingo, o padre continua a ter a igreja cheia, na maioria pessoas "já de uma certa idade". A fé e tradição cristãs que seguem são diferentes nos jovens de hoje. "É o ambiente. A escola, ir para fora, as famílias. A fé apega-se ou então apaga-se." E como é que hoje se explica aos jovens a forma como a Igreja encara o casamento? "É difícil explicar-lhes, sim."
Os jovens não são muitos em Vila de Rei, o concelho mais central do país. Dos 3452, 922 têm menos de 34 anos. Quanto ao estado civil da população, em 2011, 1662 pessoas eram casadas e apenas 97 eram divorciadas, ou seja, menos de 3% da população. Entre os casais mais jovens, o divórcio é concebido com naturalidade, embora saibam que é difícil que passe despercebido. Contudo, nenhuma das pessoas divorciadas que contactámos quis falar. Exporem as suas histórias, mesmo sem se identificarem, ficou fora de questão. O facto de as pessoas se conhecerem e poderem facilmente reconhecer a história foram as explicações dadas.
Porquê o receio? "É natural que as pessoas o tenham. Aqui é um ambiente mais rural, ainda se opõe ao divórcio", aponta o padre. Já o vereador da câmara sublinha que os divórcios são poucos, "a crise ajuda a que não haja mais", mas eles sempre existiram. "Conhecermo-nos todos aqui potencia o "falatório". É isso que incomoda."
Só que há já um século, desde 1911, que os divorciados são contados nos recenseamentos portugueses. Nunca deixaram de aumentar desde então. A primeira lei do divórcio foi promulgada ainda em 1910, pouco depois da implantação da República. Contudo, com a assinatura da Concordata entre Portugal e a Santa Sé, em 1940, criava-se um obstáculo ao divórcio num casamento feito através da Igreja Católica. Só em 1975, após o 25 de Abril, a revisão da Concordata abriria novamente caminho ao divórcio. E foi nessa altura que houve uma explosão de divórcios e casamentos. "Aquilo que estava a acontecer era como uma panela de pressão. Havia relações artificiais que se mantinham", refere Maria João Valente Rosa. "Havia condicionantes do ponto de vista social. Hoje naturalizaram-se as situações de divórcio, recasamento, filhos de outros casamentos. Isso já não é algo que nos faça corar e a pressão social é menor."
A opinião não é consensual. Pressão familiar é algo que Manuel Peixoto, psicólogo e terapeuta familiar, diz ainda existir hoje. "Há famílias onde o divórcio acontece há três gerações, outras onde nunca houve nenhum e isso tem um peso tremendo." Também Rita Sassetti, advogada especializada em Direito da Família, que há mais de 20 anos lida diariamente com casos de divórcio, defende ainda existir estigma social, sobretudo em meios pequenos. "Há muita gente que não se divorcia porque não quer que lhe apontem o dedo. Pessoas que estão separadas, vivem em casas diferentes e deixam o divórcio para mais tarde. Muitas vezes ainda mantêm a aliança no dedo."
Em Vila de Rei, é possível não conhecer ninguém divorciado. É o caso de Andreia Domingos. Tem 26 anos, casou-se com Luís Silva em 2011 e vivem numa casa que eles próprios desenharam e decoraram. Na sala, junto à televisão, têm os bonecos do bolo de casamento. Resumem em grande parte a sua história: a noiva tem uma concertina nas mãos, o noivo um computador. É que Andreia está ligada à música e a agenda está sempre preenchida. Durante a semana, trabalha num escritório, ao fim-de-semana actua em diferentes eventos, como festas de arraial. Já Luís trabalha na câmara e, como diz, passa "o dia todo no computador". "Conhecemo-nos num "bailarico" em 2006 e namorámos cinco anos", conta Luís, antes de ser corrigido. "Não foram cinco, foram quatro anos e meio." Casarem-se fazia parte dos objectivos de vida. Portanto, resumem-no rapidamente: "Foi acontecendo." Aliás, por ali, acham que quase todos acabam por seguir o mesmo caminho.
A opinião é diferente para quem organiza casamentos na zona. Carlos Marçal é dono de duas quintas em cidades perto do concelho. Há 30 anos que organiza eventos e tem a impressão de receber ali cerca de 90% dos casamentos de Vila de Rei. "Não temos uma ocupação inferior ao ano passado, temos é menos convidados por evento." E cada vez mais as pessoas procuram os preços baixos. Nas suas quintas cobra uma média de 70 euros por convidado, sem reflectir o aumento de 10% do IVA no cliente, lembra. "Estamos a ficar estrangulados e milagres não há."
Foi numa dessas quintas que Luiza e Luís Mendes se casaram, já em 2012. Luiza, que nasceu no estado brasileiro de Espírito Santo, é um exemplo de quem sublinha a sua fé como motivo para um casamento religioso. "Eu, que sou cristã, queria casar no civil como compromisso mas no religioso também." Veio para Portugal há oito anos e estuda Gerontologia Social em Lisboa, com a ideia de ir trabalhar para Vila de Rei e abrir um negócio próprio. É para lá que vai quase todos os fins-de-semana. Luís Mendes é natural do concelho e trabalha no "negócio da madeira". Vivem em casa dos pais dele, até porque as cidades grandes não o atraem. "Quanto mais pequena, melhor." Para Luiza, é diferente. "Este é um lugar pequeno, parado e senti a diferença no silêncio e no escuro." Mas vê vantagens, como viver com menos stress.
Casaram-se nove meses depois de se conhecerem. Registaram o casamento em Lisboa, "por uma questão de tempo e de documentos", mas aguardam resposta da câmara à candidatura para o apoio. "É bom recebê-lo, mas não tem muito peso na decisão. Casar era uma questão nossa." Pensam em ter filhos. "Será um bocadinho mais para a frente, mas não muito", até pelas idades (Luiza tem 38 anos, Luís 45). E é de forma aberta que Luiza, mais do que o marido, encara a realidade do divórcio. "Aqui as pessoas comentam tudo. Mas, se não dá certo, o que é que se pode fazer? Não podem condenar ninguém."
Essa opinião contrasta com as razões apontadas pelos divorciados para não partilharem as suas histórias. Se os casais mais jovens têm uma visão do divórcio mais livre e aberta, também eles partilham a conclusão de que não é um incentivo ao casamento, mesmo sendo uma boa ajuda, que os leva ao altar. Mesmo assim, Vila de Rei foi um dos poucos concelhos onde a população aumentou 2,9% de 2001 para 2011 e viu nascer 19 bebés em 2011. Só que quanto ao apoio ao casamento, sublinha a demógrafa Maria João Valente Rosa, o que está em causa não é financeiro. "O marco institucional do casamento deixou de ser necessário. Se não é necessário, um incentivo financeiro pode ou não funcionar. O casamento não é um bem de valor económico, é emocional."
Para o pároco Manuel Nunes, continua a haver casais que se mantêm unidos. "Têm dificuldades, mas mantêm-se." Celeste e José António são um exemplo. Ao longo dos últimos 51 anos, perderam uma filha, que deixou um neto com seis meses. Passe o tempo que passar, isso dói-lhes. Se hoje estão ali bem? "Não me sinto pior do que em Lisboa", responde Celeste, que de vez em quando sai para passear entre as poucas casas da aldeia apoiada em duas muletas. "Já ele está sempre na horta, monta e desmonta, depois senta-se num banco. E é muito amigo das três galinhas", conta a rir. José António aproveita a pausa da mulher, para rematar a conversa. "Depois de tantos anos casados, ainda consegue ter ciúmes."