See you on the dance floor, bitch!

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EMILE ZEIZIG

Poderiam ser só cinco corpos em espiral contínua durante quase uma hora não se desse o caso de, em cada uma das decisões automáticas e intuitivas que levam ao que aparenta ser uma repetição, se poder entrever um discurso, físico e mental, sobre a indefinível fronteira entre o corpo e a imagem que produz.

Em altered native' Say Yes to Another Excess - TWERK, que a argentina Cecilia Bengolea e o francês François Chaignaud apresentam dia 14, quinta-feira, no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães - no segundo dia de mais uma edição do GuiDance - Festival de Dança Contemporânea de Guimarães -, os dois coreógrafos e intérpretes colocam em palco a música que se ouvia nas manifestações de 2008 em Londres e dão-lhe forma através de um vocabulário herdeiro de uma manipulação do movimento e das suas implicações na percepção de corpo em mutação.

É um objecto que, conscientemente, se fragiliza pela sua exposição e sugere uma perda, uma falência, para impor, como se a arbitrariedade fosse, em si mesma, uma regra, um outro modo de implicação. Bengolea fala de "uma invenção do corpo" atenta às transferências entre o colectivo e o individual: "É interessante pensar nos parâmetros usados para definir a dança sem a consciência de que estes possam ser precedidos por um dispositivo. Creio que a dança é digna de falar por si mesma." Esta ideia, incluída na entrevista que integrava o dossier de imprensa do Festival d'Automne, em Paris, onde se apresentaram no ano passado, guarda o essencial do modo como, nos últimos anos, Bengolea e Chaignaud dinamitaram um circuito de programação que os acolheu como se fossem um dos últimos redutos de experimentação radical. E a dupla, que paralelamente aos seus espectáculos foi trabalhando com outros coreógrafos (entre eles Tiago Guedes, com quem fizeram Coisas Maravilhosas, em 2008), criou um corpo de trabalho que tem em TWERK um dos seus pontos mais altos.

"A ideia de originalidade é um conceito capitalista, exclusivo e discriminatório", diz a coreógrafa, para quem TWERK, pelo modo como amplia um trabalho sobre a memória e a herança, força a uma revisão da volatilidade dos tempos modernos que sujeitam a dança a uma trituração mediática e genérica.

Cecilia Bengolea e François Chaignaud há muito que deixaram a marginalidade que poderia caracterizar o seu discurso para serem abraçados por uma pleîade de festivais, teatros e ciclos dos mais diversos graus de institucionalização e nacionalidade, implodindo as fronteiras que opunham o laboratório e a afirmação. Estão longe os tempos em que, numa sala do TanzFabrick, em Berlim, apresentaram Pâquerette (2005-2008), dueto para dois intérpretes e dois dildos que desapareciam nos respectivos ânus, impondo limitações que eram, depois, exploradas através de movimentos que não escondiam o prazer dos próprios interpretes. Ou da sessão de meia noite em Avignon, quando mostraram Sylphides (2009) - que viria em 2011 ao festival Materiais Diversos, em Minde -, onde pareciam sufocar dentro de bolsas de latex para depois saírem como borboletas de um casulo ao som de uma música das Spice Girls. Foi com Castor et Pollux (2010), que o trabalho da dupla começou a mudar. A suspensão nas teias dos teatros, sugerindo um bailado-bondage, transformou a percepção que tinham do corpo.

Sexo no vazio

Neste novo espectáculo, o dispositivo evoca as pistas de dança - e a presença de um DJ em palco só o acentua -, mas fá-lo obedecendo a um formalismo que sujeita os espectadores à passividade, através do esmagamento provocado, primeiro, pela música e, depois, pelo falso minimalismo do movimento.

E, contudo, os coreógrafos hão-de querer activar uma presença, a do olhar atento, e uma reacção, o impulso de saltar para palco. "Ainda não aconteceu", diz Bengolea. "Mais do que fazer da dança uma ferramenta, ou uma aplicação, adoro que ela seja também um jogo. Sou esmagado por certos bailarinos de house ou de krump, que nunca deixam de dançar", diz François Chaignaud. E, na sequência de (M)imosa, que co-assinaram com Trajal Harrel e Marlene Monteiro Freitas - e que mostraram no Festival Circular, em Vila do Conde, e no Alkantara Festival, em Lisboa -, Bengolea e Chaignaud voltam a utilizar as técnicas de voguing, trazidas dos combates na pista de dança do guetto nova-iorquino, para explorar uma dimensão antropofágica (ou seja, de consumo, e desaparecimento, do próprio corpo). "Gosto deste espírito de partilha que o house guarda, bem como as danças de discoteca, muito sexuais", diz Bengolea. "É o inverso de um filme pornográfico onde tudo é banal e cirúrgico. Quando danças, há uma relação imaginária, porque tens sexo no vazio, como se fosses um corpo incompleto."

É possível pensar que um espectáculo como TWERK materialize a liberdade que Bengolea e Chaignaud sempre procuraram no interior de um percurso que se foi construindo de forma intuitiva mas que, no seu conjunto, sugere um discurso sobre as hipóteses de inscrição de danças marginais no grande saco da dança contemporânea. Foi assim com o voguing, e foi assim com Danses Libres, criado em 2010 a partir de experimentações vanguardistas do ballet clássico propostas na primeira metade do século XX por François Malkovsky. TWERK sugere, aliás, uma linhagem directa vinda destes dois espectáculos, mas para os coreógrafos o importante era "ultrapassar a análise racional e deixar que os corpos se abandonassem a decisões cegas". Diz Chaignaud que cada nova aprendizagem os faz adquirir "novas sensações, novos músculos, novas dores". É justamente essa transformação incessante dos corpos, das suas limitações e das suas explosões, que dá corpo à peça.

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