Elogio enviesado da normalidade

A palavra suspense, diz-me a imensa erudição da Internet, deriva do francês suspens, que significa, se o tradutor do Google estiver em forma, não resolvido, à espreita, incerto.

Na literatura, suspense não é uma simples palavra, é tanto uma técnica como um género, caracterizado pela supressão de informação fundamental para a compreensão da trama: o sentido último das acções das personagens fica suspenso até que todas as peças se unam e o prazer do leitor deriva da tentativa de adivinhar o fim sabendo que há elementos essenciais que lhe estão a ser sonegados. Enquanto género, o suspense é o tipo de livro em que a última página acaba por ter um valor ontológico superior às que a precedem.

Isto, convém realçar, é-me vagamente alheio: num livro verdadeiramente grande, a “história”, o fim, o quem matou não interessam para nada; o desdobramento das múltiplas hipóteses de vida de cada personagem, os porquês de uma personagem ser assim, como é que uma personagem carrega a sua cruz, é aí que reside a grande literatura. Mas como também não estou certo de que todos os livros tenham de ser grandes, assumo que troco com prazer uma tarde de Le Carré por semanas de Proust.

Dá-se que O Ano Sabático, não se furtando aos jogos de espelhos que iludem o leitor, é levado por uma demanda inquisitória em que a velha e hoje tão mal vista ideia de sentido para a vida humana é procurada incessantemente. Nem sempre de forma exímia; mas pelo menos com arrojo, o que torna O Ano Sabático mais do que um simples jogo de adivinhas, mais do que a narração de uma sequência de eventos espoletada por um acontecimento cujo grau de probabilidade é mais ínfimo do que a hipótese de os nossos salários aumentarem antes de 2020.

O primeiro protagonista do novo romance de João Tordo é Hugo, um contrabaixista de parco êxito que deixa Montreal, onde se sediara após anos a vaguear sem rumo, para fugir à dívida que contraíra com um agiota de modo a comprar o seu instrumento. Hugo tem 43 anos, é errático, bebe de mais, toma drogas e, apesar de ser obcecado pela sua arte, não a trata com o esmero necessário.

Tordo conduz-nos com mestria, nesse início: toda a nossa atenção é dirigida para a relação de Hugo com o seu agiota, e tentamos adivinhar que mais ele terá aprontado em Montreal para voltar a Lisboa e refugiar-se em casa da sua irmã, casada e com um filho de três anos, o Mateus - personagem preciosamente esculpida, que chama “barco baixo” ao contrabaixo.

O primeiro acaso improvável surge após quatro dezenas de páginas: num encontro às cegas com uma rapariga, Hugo vai a um concerto de jazz em que um pianista toca a mesma melodia em que o contrabaixista anda a trabalhar há anos. Atónito, compra o único disco que Stockman, o pianista, editou, à procura da melodia, não a encontrando. Uma série de eventos rocambolescos leva-o a ser expulso de casa de irmã, arrendando umas águas-furtadas e pedindo dinheiro emprestado à mãe, a quem conta que outro músico lhe roubou, sem nunca o ter ouvido, o seu tema. “Quem sabe se somos almas gémeas”, diz Hugo, procurando justificar aquele insólito caso e não se dando conta de que está a ser vítima de um diálogo não muito conseguido. A mãe, procurando magoá-lo, diz-lhe: “Tu já tiveste uma alma gémea. E olha que a coisa não correu muito bem”. Esta afirmação refere-se à gestação de Hugo e Júlia: a mãe pensava estar grávida de um par de gémeos (Hugo e Júlia), mas no parto descobre tratarem-se de três irmãos, um dos quais morre ao fim de umas horas.

Após ser várias vezes confundido com Stockman, Hugo, cada vez mais instável, começa a acreditar que o pianista é o seu gémeo idêntico e inventa hipóteses loucas: que o irmão não teria morrido, antes sido roubado do hospital, criado na ignorância do seu semelhante genético e acabado a compor a mesma exacta melodia.

Trigémeos idênticos são uma raridade; bebés roubados são uma excepção; trigémeos idênticos em que um deles é roubado é uma tragédia cósmica altamente improvável - e quase de certeza que já aconteceu algo assim, visto o mundo ser propício a acontecimentos insólitos. Hugo está consciente de estar do lado errado da ponderação estatística: sabe que a hipótese de Stockman ser seu gémeo é remota e que mencioná-la a quem quer que seja é qualificar-se automaticamente como louco aos olhos dos outros. Não encontrando outra explicação para a dupla melodia, e após confrontar Stockman com o seu roubo (e cometer mais um par de disparates), não lhe resta se não cindir-se entre a hipótese de ter sido vítima de um acaso cósmico (ver-se privado a vida inteira de um irmão gémeo) ou de ter sido vítima de um acaso cósmico (ver-se privado de uma melodia que havia mantido em segredo). Na dúvida, decide matar Stockman.

Agora: como falar da segunda parte sem cometer o pecado do spoiler? A partir daqui, estão por vossa conta e risco. SPOILER: o protagonista da segunda parte é Stockman. Essa segunda parte é - SPOILER - narrada pelo melhor amigo do pianista, que nos relata - SPOILER - o que sucedeu ao amigo após este ter tomado conhecimento do destino do contrabaixista. A fim de não estragarmos por completo as reviengas finais do romance, digamos que - SPOILER - Stockman tenta seguir os passos daquele seu duplo, deslocando-se mesmo ao Canadá, onde descobre afinidades com o homem que o perseguira.

Tordo carrega com escassa subtileza neste jogo de duplos, mas em literatura há que aceitar páginas menores em função de um resultado maior, no caso a hipótese de dois seres com a mesma carga genética terem alcançado resultados diferentes mesmo seguindo interesses comuns: um é um alcoólatra preguiçoso que nunca gravou o seu tema de eleição; o outro é um trabalhador incansável que alcança o sucesso após uma obsessiva demanda. Já agora: Hugo vai parar ao contrabaixo por mero acaso e já depois dos 30, após ver Charlie Haden em concerto; Luís Stockman é introduzido à música cedo. Hugo é possuído pela sua insegurança; Luís cedo cedeu à sua necessidade de ser resoluto.

Duas ideias dominam O Ano Sabático: uma é a de que estamos sempre incompletos; não se trata de todos termos um gémeo que anda por aí sem o sabermos a pensar o mesmo que nós e a ser brilhante e bem sucedido, antes de nada - nem a arte - nos poder completar. A segunda ideia é a de que estamos imersos no caos: o que parece louco é apenas altamente improvável; a loucura é a crença numa improbabilidade que não se pode provar. Ainda assim, e por definição, o improvável é possível.

SPOILER: o que Tordo nos diz é que isto de estar vivo e ter o que comer é uma questão de sorte. Racionalmente, a cada passo que damos devíamos admitir que o resultado desse passo não tem obrigatoriamente de ser o mais provável, pode muito bem ser o mais improvável. Por outro lado, e olhando ao destino destes dois homens marcados por uma imensa necessidade de ir ao fundo das questões, a moral que se retira de O Ano Sabático é que mais vale atravessar a vida sem ceder demasiado espaço à lógica e à racionalidade que legitimam o improvável; mais vale fechar os olhos e ter fé no provável, no normal, na média dos acontecimentos. A crença na média torna-nos medianos, expõe-nos a acontecimentos médios. Não parece, mas O Ano Sabático acaba por ser um elogio enviesado da normalidade.

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