"Passa-se tudo em Bissau e nós sabemos", diz ex-ministra sobre narcotráfico na Guiné
Carmelita Pires, advogada e ex-ministra da Justiça guineense, denuncia infiltrações "ao mais alto nível". E pede apoio internacional para eleições.
Quando quer aceder ao território de um país, ainda que para fins de armazenamento ou trânsito, a “máfia” do tráfico de droga actua através do “acesso a determinadas pessoas, que lhe permitam o direito de passagem”, disse a especialista, em entrevista à Lusa. “Não estou a ver os soldados rasos a concederem esse direito de passagem”, confessa Carmelita Pires, realçando que, na Guiné-Bissau e noutros Estados igualmente frágeis, o narcotráfico “infiltra-se ao mais alto nível”.
“Passa-se tudo em Bissau e nós sabemos”, realça a advogada e ex-ministra da Justiça da Guiné-Bissau, que foi, durante três anos, conselheira especial do presidente da CEDEAO para o combate à droga e ao crime organizado.
Recordando que, enquanto ministra, defendeu a investigação, acusação e o julgamento desses casos – na sequência do que chegou a receber ameaças de morte –, Carmelita Pires reconhece que, a esse nível, “as coisas não têm corrido bem”. “Um dos nossos principais problemas tem a ver com a questão da impunidade e aí não posso dizer que tenhamos tido resultados”, vinca.
Simultaneamente, admite, o sucesso do combate internacional ao narcotráfico na Guiné-Bissau e na região da África Ocidental tem sido impedido por “condicionalismos, sobretudo de cariz financeiro”.
O plano de combate da CEDEAO “é extremamente ambicioso” e pressupõe acções concretas, entre as quais a ex-governante destaca a partilha de informação e operações conjuntas entre as polícias da região. “Este trabalho já começou, mas ainda não está totalmente em prática. Fizeram-se só duas ou três operações”, diz.
A criação de um tribunal específico, que contorne as “debilidades” dos sistemas judiciais da região, e a harmonização da legislação são outras medidas constantes no plano, acrescenta.
Na entrevista, é também abordada a situação criada pelo golpe militar de 12 de Abril do ano passado. A crise, disse, deve ser resolvida internamente, mas a comunidade internacional não pode abdicar de apoiar a realização de eleições e uma futura reforma das forças armadas, defende a ex-ministra.
Numa altura em que ainda é incerto um financiamento internacional às eleições, Carmelita Pires frisa que a comunidade internacional “tem de saber” que “a Guiné-Bissau não pode, neste momento, fazer nada que não seja com um apoio muito sério”.
O acordo de transição, assinado em Maio de 2012, previa a realização de eleições no prazo máximo de um ano e Carmelita Pereira não admite sequer a possibilidade de a comunidade internacional ignorar os apelos financeiros para a sua realização.
A cada crise, aumentam as “fracturas” no país, avisa. “Estamos quase que persistentemente a aguardar algo”, diz, considerando o último golpe “previsível” e reconhecendo que aos guineenses compete “entrar em diálogo e chegar a um consenso”, o que “não é fácil”.
Período de transição
Para Carmelita Pires, a Guiné-Bissau deve ter três objectivos fundamentais para o futuro: acabar com a impunidade, reformar a classe política e reorganizar as forças armadas. Mas nada disto “deve ser feito durante o período de transição”, só com “um governo legítimo”, após eleições.
Apesar dos “vários esforços que foram sendo feitos”, sobretudo desde 2006, para reestruturar as forças de defesa e segurança, não houve “coragem” nem “sorte” que levassem esse projecto a bom porto, reconhece.
As forças armadas não obedecem “ao mínimo” exigido ao seu funcionamento e à defesa dos interesses geopolíticos do país, são “sobredimensionadas”, não têm uma cadeia de comando que funcione, “entre uma série de outras anomalias”, enumera.
“Existe sempre um contrapoder em relação às pretensões do poder civil”, analisa, referindo ainda “alguma promiscuidade entre poder civil e poder militar”. Por isso, simultaneamente, considera necessária uma “reforma da classe política”.
Carmelita Pires terminou a missão na CEDEAO em Novembro e viajou até Lisboa. Já adiou o regresso à Guiné por três vezes, mas não se considera “exilada”, acreditando que as eleições vão acontecer “quanto antes” e que a “normalidade constitucional” será retomada no país.