Quero ser feliz. Estou em busca da felicidade. Humanistas, façam-me o favor de arranjar alegria. Só preciso de alguns caprichos: um sofá, uma televisão, um comando e uma variedade generosa de séries, filmes e documentários. Isto é só o prioritário. Há mais. Para além do óbvio, como boa comida, gosto de livros e aprender línguas. Exijo uma biblioteca e aulas de italiano em horário pós-laboral. A minha intenção é louvável: quero declamar Alighieri na língua materna. É cultura, garanto. E não me venham com fitas, como dizer que Dante é fútil.
O Estado deve centrar as suas políticas na pessoa humana, "esta é o centro e o fim último de todas as decisões políticas". Eu não conheço nenhuma pessoa que não seja humana, mas confio nos humanistas militantes. Finalmente, convenceram-me que é preciso vociferar basta! Vamos ignorar os problemas económicos do país. Afinal, estes só subsistem pela perfídia dos interesses instalados. Vamos abnegar o lucro, a ganância e o egoísmo. Uma sociedade feliz não precisa de esforço, dedicação e, quem sabe, alguns vestígios de sacrifício pessoal.
Não precisa, certamente. Quem alega tais coisas são os parvos, os idiotas ideologicamente condicionados. Os seres humanos querem ser felizes e devem ser felizes! A felicidade é um bem supremo! As dificuldades só incomodam, portanto, devem ser abolidas. Por decreto, com efeito imediato. Se o decreto não funcionar, não há problema nenhum. Encomendamos uma revolução, possivelmente aos islandeses. Daquelas com muita fibra e sais minerais. Arranjamos um navio cargueiro (infelizmente, vamos ter de pagá-lo), de modo, a expedir os opressores "instalados" que põem o país em marcha à ré para um lugar distante, como a Mongólia (Madagáscar não seria original).
Uma revolução é uma operação logística complexa. Embora existam os casos evidentes de joio, nem sempre é fácil distinguir uma pessoa humana opressora, retrógrada e subdesenvolvida, de uma pessoa supra-humana instruída, sapiente, cheia de humanismo e hiper-desenvolvida. Apesar destes reveses, felizmente, o que não faltam neste país são especialistas em revoluções, seres perfeitamente capazes de desempenhar estas funções logísticas complexas com brio e esmero.
Despachados os opressores, começa a bonança. Bem, começa salvo seja. A promessa de garantir plenitude, bem-aventurança e prosperidade a 10.562.178 de indivíduos (Censos 2011) não é tarefa de somenos. O empreendimento pode produzir dores de cabeça. São tantos os problemas que suponho até que não tenha espaço para todos. A condição humana prima pela diversidade, cada um deve trilhar o seu próprio destino. Compete à sociedade não anular a possibilidade de cada um palmilhar o seu percurso. Porém, isto não significa que o colectivo deva servir tudo de bandeja. O que é bom para uns pode ser péssimo para outros. Eu sei que os arautos do humanismo militante já têm tudo bem delineado, mas lembro que os recursos são limitados, para além de não ser humano definir trajectos lineares para a felicidade alheia. Quando falo de recursos, não estou só a referir o capital. Um outro exemplo de um recurso exíguo é o tempo.
Lembram-se dos meus caprichos? Conseguem imaginar o tempo necessário para eu ter tudo aquilo? O tempo de outras pessoas, digamos, humanas. Tempo alheio que, seguramente, não me pertence. Não será um pouco abusivo exigir para mim o vosso tempo para satisfazer os meus caprichos? Agora, multipliquem estes individuais preceitos idílicos por 10.562.178 de portugueses. Repararam o incomensurável tempo necessário para erguer uma sociedade absolutamente ideal? Se queremos regressar ao Jardim de Éden, o bilhete de ida não será nenhuma bagatela.