Crítica de Música: Aldina Duarte soma fados e triunfos na Culturgest
A cada novo espectáculo na Culturgest, sala onde ela estreia tudo o que vai criando, Aldina Duarte dá sinais de um amadurecimento calculado e constante.
Mais um Fado no Fado, sendo um espectáculo muito bom, não destronou o melhor que ali vimos (esse lugar está ainda ocupado por Mulheres ao Espelho, de 2009, que superou o já excelente Crua, com cenários de Jorge Silva Melo, de 2006) mas cumpriu à risca o prometido, ou seja, valorizar o fado tradicional de duas formas complementares.
Usando como cenário apenas o negro (ou cinzento-escuro) do palco e das vestes dos cantores e músicos, Aldina teve na primeira parte como convidados António Zambujo e Ana Moura, cantando, como ela, acompanhados à guitarra e à viola pelos excelentes José Manuel Neto e Carlos Manuel Proença. Ali, como numa casa de fados, incidindo os comedidos holofotes apenas sobre as expressões dos intérpretes, de modo a concentrar todas as atenções na música e no estilar da alma fadista.
Lírio Quebrado, a abrir, mostrou logo Aldina em muito boa forma, para se apagar um pouco mais em A voz do silêncio, só voz e guitarra. Zambujo entrou depois, para dois fados, brilhando em A nossa contradição, que Aldina escreveu para ele sobre música de Alfredo Marceneiro. Aldina voltou, com Paraíso anunciado e Muro vazio, arrancando com este o primeiro (merecido) “bravo!” à plateia.
De dois em dois fados se foi, assim, cumprindo a primeira parte, agora com Ana Moura (segunda convidada da noite) a entregar a sua voz ao fado Menor de Aldina (M.F.) e depois a reinterpretar Se acaso um anjo viesse, escrito por Aldina para ela gravar em Desfado, o seu mais recente disco.
Oito fados passados, José Manuel Neto e Carlos Manuel Proença mostraram (como é já ritual nestes concertos) por que são indispensáveis ao som e aos fados de Aldina Duarte, com um instrumental arrebatador.
Na segunda parte entrou o terceiro convidado: Júlio Resende, jovem pianista de formação clássica com os melhores pergaminhos no jazz. E com ele Aldina mostrou os bons frutos da experiência de revisitação de fados tradicionais através da relação voz-piano. Com uma ressalva: enquanto na primeira parte todas as letras haviam sido dela, aqui a voz (poética) seria dada apenas a outros: Maria do Rosário Pedreira, Manuela de Freitas, Luís de Macedo.
Apenas o vento foi um bom começo, seguro e prenunciador de melhores caminhos. E assim foi: Antes de quê?, De costas voltadas e Fado com dono suscitaram, todos eles, “bravos!” da plateia. Ao incentivo respondeu Aldina ao melhor nível: Anjo inútil, com o piano mais subtil, foi um hino à alma fadista, enquanto Alfama (que Ary dos Santos e Alain Oulman compuseram para a voz de Amália) foi fado eterno com garra e sem rasuras. Depois dele, À espera de redenção só poderia ser redentor, numa versão belíssima. E mais um sonoro “bravo!”
Depois, a sala escureceu e a voz acendeu-se no escuro: Fernando Pessoa, Cai chuva do céu cinzento, e Aldina pressentida na penumbra a entregar-se a cada palavra, como se nelas procurasse apoio e refúgio a um só tempo.
Um falso final. Os muitos aplausos forçaram-na a um primeiro regresso, já com guitarra e viola, para cantar Ai meu amor se bastasse e uma A estação das cerejas (de João Monge) absolutamente sublime.
Voltaria outra vez, em alta, com Gato escaldado e, retomando-se como autora, com a excelente Princesa prometida, um dos ex-libris do seu reportório.
Uma certeza, herdada desta audição: se Aldina Duarte regravasse, hoje, os seus quatro discos, todos eles teriam a ganhar com isso. E isto já diz muito do (comprovado) estado de maturidade da sua voz.