O dia-a-dia de um “gajo desempregado” mas com humor
Caiu no desemprego há quatro meses e decidiu seguir o conselho do primeiro-ministro: aproveitar a "oportunidade". A página do Facebook "Finalmente Sou um Gajo Desempregado" fala do "coiso" sempre com humor
Identifica-se como um "gajo desempregado" e é licenciado e pós-graduado em Marketing, Relações Públicas e Publicidade - algo que tem sido muito proveitoso: "Quero realçar a utilidade e qualidade do cartão dos diplomas, que dão óptimos calços para equilibrar os móveis", disse ao P3 numa entrevista por email. A página do Facebook Finalmente Sou um Gajo Desempregado (à qual já se juntou um blogue com o mesmo nome) é o dia-a-dia dele. Centros de Emprego, (poucas) entrevistas, o telemóvel sempre ao lado à espera da chamada que não chega, o sofá com uma cratera que não tinha. Aqui fala-se de desemprego, mas sem o "fado do desgraçadinho". A dor guarda-a só para ele.
Desde quando é que és um "gajo desempregado"?
Há sensivelmente quatro meses resolvi abraçar o desemprego. Mas a verdade é que depois de o Pedro [Passos Coelho] ter falado que o desemprego seria uma "oportunidade", desde logo, percebi que me estava a "perder empregado" e que tinha de agir para aproveitar esta benesse governamental, antes que se esfumasse! Se ao início ainda tive algumas dúvidas, elas dissiparam-se quando o Álvaro [Santos Pereira] falou no "coiso". Quem no seu perfeito juízo deixaria passar a "oportunidade" de "coiso"? Em boa hora o fiz. Têm sido quatro meses fabulosos onde "abandonei a zona de conforto" da "cadeira do escritório" e abracei uma zona mais confortável: a zona do sofá de casa, à procura da oportunidade e coiso.
Quando e porquê surgiu a ideia de criar a página "Finalmente Sou um Gajo Desempregado"?
Porque, depois de dois ano a fintar o desemprego, "finalmente" o Pedro conseguiu que aceitasse a sua "oportunidade"; porque necessitava de exorcizar para o mundo a felicidade que me invadia por fazer parte das estatísticas do "coiso". Mas foi desde logo ponto de honra: não iria carpir mágoas e debitar o fado do desgraçadinho. As pessoas têm os seus problemas, não necessitam de mais ninguém a choramingar os dela. Também precisava de algo libertador e que me "animasse" diariamente. Uma "companhia". Tem sido uma experiência fabulosa. O "sucesso" da página virá daí, penso eu. Sem eu perceber bem como, a página tornou-se um ponto de encontro de pessoas que trocam as suas histórias sobre o desemprego de forma engraçada, sendo eu somente o catalisador. Sinto que as pessoas precisam de desabafar mas sem ser só negativamente. Já é tudo tão mau. É óbvio que por trás de tanta boa disposição existe muita dor, mas cada um guarda a sua para si. Muitos utilizam a página como um dos poucos escapes para fugir às maravilhas do "coiso". Curiosamente muitos empregados também aderiram. Ajuda-me bastante a passar o dia e a ver as coisas de outra maneira com as experiências de cada um.
Pelo que li a tua empresa achou uma injustiça o teu despedimento. Se não foi por falta de "amor", foi por falta de quê?
Para ser sincero, à distância, assemelha-se tudo àquela situação que todos passamos uma vez na vida, na adolescência, quando a(o) namorada(o), enquanto nos calça os patins, nos vai dizendo como somos magníficos e especiais e que nunca irão encontrar ninguém como nós. Ou quando na primária não dizíamos "batatas", mas a professora dizia à nossa mãe que éramos Einsteins em potência. Massagens no ego. Sei que não foi pela competência e profissionalismo. Isso deixa-me um travo menos amargo.
Os centros de emprego são mesmo a segunda casa de um desempregado?
De maneira nenhuma. Falta-lhe algo acolchoado para nos sentarmos. O Centro de Emprego serve para o desempregado ter um motivo para sair de casa de 15 em 15 dias e para se sentir como um criminoso com apresentação periódica. Talvez uma pulseirinha não fosse má ideia.
E o currículo? Vale mais ser sincero ou adaptar à oportunidade de emprego?
Sem dúvida adaptar, senão vejamos dois casos de sucesso: Miguel Relvas "adaptou" o título de doutor quase uma década antes de se "licenciar". Passos Coelho também "adaptou" o currículo às necessidades," esquecendo-se", de referir empresas onde trabalhou, porque não interessava que se soubesse. Ninguém melhor que os nossos governantes para nos servirem de exemplo!
As entrevistas de emprego são mesmo um pesadelo? Qual foi a mais complicada que tiveste? E a quantas já foste?
Fui a quatro. Nenhuma me interessava realmente. Arranjar uma entrevista é como ganhar o totoloto, e uma para um emprego de que gostamos realmente é o Euromilhões. Complicada, só quando o empregador confunde o procurar emprego com mendigar emprego e te trata como um ser inferior.
As respostas nem sempre surgem... Isso deixa-te à beira de um ataque de nervos?
Com um milhão de desempregados não me pode deixar. Mas olhar para a mediocridade dos nossos governantes e deputados, deixa-me. Sou mais competente que grande parte deles, sem falar na idoneidade. Ah! E bebo muito menos que a deputada do PS, de longeeeeeee.
Um desempregado nunca larga o telemóvel, à espera que uma das 500 empresas para as quais mandou cv ligue? Ou a descrença é total?
Nunca se larga. A família está sempre a ligar para saber se ainda não cometemos suicídio. Sobre telefonemas das empresas a bateria aguenta para cinco anos sem carregar. Mas a esperança continua sempre.
Como pode poupar dinheiro um desempregado?
Fácil: seguindo os conselhos do governo para comer com critério e se possível não comer. Quanto mais dormir menos refeições faz, mais poupa. Quando tem sede, não bebe água, molha os lábios. Um desempregado pode poupar também se seguir as indicações da Jonet. Nada de bifes e muito atum. Obviamente, optar por não estar doente.
E como pode não enlouquecer? Pelo que li já tens um amigo imaginário...
Acaba por ser a companhia que vê connosco a "Querida Júlia" e não nos deixa ligar para aquele número que ela repete até à loucura. Depois, é um sinal de inteligência. Saiu um estudo que diz que quem fala sozinho é mais evoluído emocionalmente. Convém acreditar nisto.
Atum em vez de bifes, passear nos centros comerciais à espera que o tempo passe, não dar prendas no Natal. Conta-nos coisas que só os desempregados sentem/ sabem...
Basicamente tem pouca diferença para 90% dos empregados que não têm cartão de crédito do estado ou não passam férias no Copacabana Palace. Um desempregado só não tem oito horas diárias ocupadas para receber uma gorjeta ao final do mês. No meu caso, sei que o sofá já tem uma cova que não tinha, e sinto que os abdominais andam a esconder-se. Deixo um desejo final: espero que a constituição não venha travar a possibilidade de se legalizar o trabalho escravo.