A vida a preto e branco em Lourenço Marques que a censura não deixou ver

Filmado em 1964, Catembe, de Faria de Almeida, mostrava-nos o outro lado da propaganda do regime: a vida em Lourenço Marques. Cortado pela censura em metade da sua duração, é exibido quinta-feira às 19h, na Cinemateca. Com 11 minutos recuperados ao material que tinha sido censurado.

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Filmado em 1964, mostrava o outro lado, o “lado mais genuíno da vida local”. Retalhado, sobreviveu. Dos seus 87 minutos originais, sobraram 45. Vamos vê-los esta noite, às 19h, na Cinemateca de Lisboa. Numa sessão que conta com a presença do realizador, teremos também oportunidade de ver um pouco do que a censura não queria que víssemos. Onze minutos de cenas cortadas, recuperados pelo realizador. O lado escondido.

Manuel Faria de Almeida, nascido em Lourenço Marques em 1934, estudara em Inglaterra na London School Of Film Technique, estagiara na Cinemateca Francesa, contactara com o Cinema Directo a despontar em Inglaterra, entusiasmara-se com Chris Marker, Alain Resnais e com o Cléo das 5 às 7 de Agnés Varda. Quando avançou para Catembe, já tinha ganho o primeiro prémio do Festival Cinestud de Amesterdão com Streets of Early Sorrow (Os Caminhos para a Angústia), realizado no âmbito do curso em Inglaterra e inspirado num dos crimes do apartheid sul-africano, o massacre de Sharpeville. Nunca exibido em Portugal, mas que a investigadora Maria do Carmo Piçarra, estudiosa do cinema português feito durante o Estado Novo, apresentou em Londres em 2012, perante o entusiasmo de uma plateia em que se encontravam, por exemplo, os curadores da Tate Modern, esta curta é por si reveladora, afirma a investigadora, do talento de Faria de Almeida. Catembe, porém, seria outra coisa.

Documentário e ficção, a filmagem de uma realidade vivida mas não preservada em película. Começa em Lisboa, com Faria de Almeida perguntando na rua sobre Lourenço Marques. Recebe as respostas de quem só conhecia a cidade através da propaganda do regime: “É na selva e há leões a andar na rua”. Depois, acompanha a vida em Lourenço Marques em cada um dos dias de uma semana.

António da Cunha Telles, o seu produtor, recordando as peripécias que sofreu, chama-lhe “um filme que foi conquistado”. José Manuel Costa, vice-director da Cinemateca, recordando que Faria de Almeida fez uma “carreira paralela” a realizadores do cinema novo português como Fernando Lopes, com quem conviveu na escola londrina, aponta que será “importante uma atenção redobrada ao Catembe e um estudo do seu guião original ilustrado [que o realizador depositou há muito na Cinemateca] que permita perceber melhor as vertentes da renovação do cinema português num momento decisivo, o do seu renascimento”.

António da Cunha Telles confessa nunca ter percebido por que é que a censura bloqueou tanto Catembe. Lembra-se de um filme “com muita candura e uma certa ingenuidade”, em que Faria de Almeida “concebe Lourenço Marques como ponto de partida para a união de todas as pessoas que habitavam Moçambique”: “Mesmo tendo em conta a sensibilidade das entidades oficiais da altura, nada fazia prever que o filme viesse a ser proibido”. Mas foi, como sabemos. Primeiro cortado a 45 minutos e depois censurado definitivamente, tornar-se-ia o momento decisivo da carreira de Faria de Almeida. “Tem a consequência brutal de ter impedido a emergência de um realizador tecnicamente extraordinário que, a partir dessa experiência, perde a vontade de fazer cinema de ficção e passa ao documentário, depois à televisão, depois a funções mais administrativas”.

Mas o que preocupava tanto a censura? Na mesma época, foram também proibidos Deixem-me ao Menos Subir às Palmeiras, de Joaquim Lopes Barbosa, ou A Invenção do Amor, de António Campos. Estes eram, porém, filmes declaradamente anticoloniais. Catembe era um testemunho social. E foi isso que o tornou perigoso aos olhos do regime. O estudo do guião original mostra que a maior parte das cenas censuradas mostrava a vida local de Maputo: “A população negra, a vida nocturna, os bares”, descreve José Manuel Costa. Tudo isso foi eliminado – e, em parte, agora recuperado nos 11 minutos que a Cinemateca exibirá, ainda em versão videográfica, dado que o seu restauro não está concluído. A realidade, como é norma nos regimes totalitários, não agradava ao Estado Novo.

“Interessavam-lhe os filmes de propaganda subjugados à lógica do desenvolvimento branco, das infra-estruturas e desenvolvimento que os colonos tinham levado a África. O que englobava as populações negras”, aponta José Manuel Costa, “era mostrado sob um ponto de vista folclórico, pretensamente etnográfico”. É daí, diz Maria do Carmo Piçarra, que nasce a ideia do país menos racista e mais simpático para os outros povos. “Catembe é censurado porque apresenta uma visão disruptiva do que o cinema de propaganda propunha. Numa das sequências, quase totalmente censurada, mostra uma mulata, Catembe, apaixonada por um pescador pobre. Mostra [em cena também censurada] a convivência racial nos bares de Maputo, com pretos e brancos dançando uns com os outros. Todo um ambiente que nada tinha a ver com ‘Fado, Fátima e Futebol’”.

Tudo isto que escrevemos é o ontem. E hoje? Qual a importância deste Catembe que nunca conheceremos na sua versão original, deste documento retalhado da vida moçambicana colonial? Ao vê-lo, acentua o vice-director da Cinemateca, “descobre-se uma África que se cruzou connosco e que foi muitas vezes silenciada, mas para a qual algumas pessoas estavam despertas”. Maria do Carmo Piçarra chama-lhe “um enorme testemunho, um monumento em que é possível perceber a pequenez e mediocridade de um regime que queria formatar a cabeça dos portugueses”.

A investigadora diz até que, havendo cinema na versão censurada de Catembe, este é ainda mais importante pelo que se tornou enquanto símbolo. “Nós somos a nossa história. Não vivemos hoje em ditadura, mas continua a haver a tentação de dizer aos portugueses como devem ser e o que devem pensar”.
 
 
 
 
 

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