Morreu Nagisa Oshima, um dos grandes cineastas do corpo

O realizador de O Império dos Sentidos e Feliz Natal, Mr. Lawrence, um dos mais importantes nomes do cinema japonês do século XX, morreu num hospital de Kanagawa, a sul de Tóquio.

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Nagisa Oshima com a mulher e o actor Ryuhei Matsuda em Cannes Reuters
O último filme de Oshima (o segundo à esquerda) foi protagonizado por Tadanobu Asano, Uno Kanda e Takeshi Kitano
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O último filme de Oshima (o segundo à esquerda) foi protagonizado por Tadanobu Asano, Uno Kanda e Takeshi Kitano Pascal Guyot/AFP
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Fotograma de Violence at Noon (Hakuchu no torima), 1966 DR
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Fotograma de O Império dos Sentidos (Ai no corrida), 1976 DR
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Fotograma Feliz Natal, Mr. Lawrence (Furyo), 1983 DR
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Fotograma de Noite e Nevoeiro no Japão (Nihon no yoru to kiri), 1960 DR
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Fotograma de Cerimónia Solene (Gishiki), 1971 DR
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Tatsuya Fuji como Toyoji e Kazuko Yoshiyuki como Seki em O Império da Paixão , 1978 DR
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Nagisa Oshima DR

"O meu pai morreu tranquilamente", disse à AFP o seu filho mais novo, Arata, precisando que o cineasta se encontrava internado desde o ano passado e que faleceu rodeado pela família, entre os quais a mulher, Akiko.

A primeira longa-metragem de Oshima foi Uma Cidade de Amor e Esperança (Ai to Kibo no Machi), de 1959, tendo logo aí firmado uma temática que iria percorrer a sua obra: os deslocados, as personagens mal amadas e à margem de uma sociedade. Já Feliz Natal, Mr. Lawrence, um filme de guerra protagonizado por David Bowie, que interpreta um prisioneiro britânico num campo japonês, e pelo compositor Ryuichi Sakamoto, que veste a pele de um militar japonês que dirige o campo, mereceu a Nagisa Oshima a entrada a concurso para a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1983. Seria o seu único filme em inglês, onde o realizador tenta resgatar a memória do comportamento do Japão na Segunda Guerra Mundial. O filme explora a relação homoerótica entre Bowie e Sakamoto, contando ainda com a presença do actor e realizador Takeshi Kitano.

Nascido a 31 de Março de 1932 em Quioto, no meio de uma família aristocrática e tradicional, Nagisa cedo se interessou por causas estudantis e por política. Licenciou-se em Direito pela Universidade de Quioto, onde liderava actividades estudantis de esquerda, e especializou-se em História Política. Mais tarde, tornou-se crítico de filmes e editor da revista de cinema Eiga Hihyo. Foi nos estúdios Shochiku que aprendeu a filmar, trabalhando como assistente de realização. 

Nagisa Oshima foi um dos nomes-chave da “nova vaga” japonesa conhecida como nuberu bagu, iniciada em finais dos anos 1950 por uma geração de jovens realizadores que trabalhava dentro do sistema de estúdios nipónico, da qual faziam igualmente parte Shohei Imamura, Kaneto Shindo, Masahiro Shinoda ou Seijun Suzuki. A carreira dos velhos mestres acabava, o cinema era cada vez mais ameaçado pela televisão, um novo público chegava às salas e os velhos estúdios não tinham como não acolher a "revolução" – tal como aconteceria na América à "nova Hollywood".

Depois da sua estreia na longa-metragem em 1959 com Ai To Kibo No Machi, Oshima assinou durante os dez anos seguintes 17 das suas 26 longas-metragens, tornando-o num dos mais prolíferos cineastas de uma década fértil em convulsões na arte e na sociedade nipónica. A que Oshima respondeu, em filmes como O Enforcamento, Noite e Nevoeiro no Japão ou Cerimónia Solene, como ferozes investidas contra a sociedade burguesa, armadas de sexo e política.

Experimentalista formal incansável e iconoclasta assumido que disse em tempos odiar tudo no cinema japonês, Oshima abandonou os estúdios Shochiku onde iniciara carreira na sequência da controvérsia levantada por Nihon no Yoru to Kiri (Noite e Nevoeiro no Japão, 1960). Esta sátira da política japonesa foi retirada de exibição pela companhia, preocupada que o filme tivesse incentivado o assassínio de um político por um membro da extrema-direita. Oshima estabeleceu-se então independentemente e partiu para uma carreira marcada pelas reviravoltas estilísticas. Para Ninja Bugei-cho (Bando de Ninjas, 1967) sonorizou quadradinhos de um popular manga de época; Shinjuku Dorobo Nikki (Diário de um Ladrão de Shinjuku, 1969) construía-se como uma colagem godardiana de ficção, improvisação, documentário e found-footage.

Se os críticos e estudiosos consideram a sua produção dos anos 1960 como fulcral para a compreensão da sua carreira, a maioria destes filmes foi pouco vista fora do Japão e só começou a ser descoberta no Ocidente com o recente reacordar do interesse na história do cinema japonês.

Foram os últimos filmes de Oshima – as obras realizadas a partir de Cerimónia Solene (1971) – a valer-lhe a sua aclamação internacional: a co-produção britânica Feliz Natal, Mr. Lawrence (1983), com David Bowie, e o controverso díptico formado por O Império dos Sentidos (1976) e O Império da Paixão (1978, Melhor Realizador em Cannes). O seu último filme, Tabu, foi realizado em 1999, numa altura em que Oshima se encontrava já debilitado; dois AVC sofridos posteriormente impediram-no de voltar a filmar.

O escândalo em Portugal

E foi O Império dos Sentidos que lançou inesperadamente, pelo menos sob a forma de referência de cultura popular, Oshima para o mainstream português. Os anos 1990 tinham acabado de começar e a RTP programou a exibição de O Império dos Sentidos para uma noite do início de 1991. O erotismo do filme, focado na relação num crescendo obcessivo entre a prostituta Sada (interpretada por Eiko Matsuda) e o dono do bordel Kichizo (Tatsuya Fuji), gerou escândalo em Portugal e teve honras de primeira página dos jornais – na época, o arcebispo de Braga, D. Eurico Dias Nogueira, insurgiu-se contra a administração da RTP pela inclusão da obra na grelha do canal público, tendo ficado conhecida a sua frase sobre o visionamento de O Império dos Sentidos: "Aprendi mais em dez minutos deste filme do que no resto da minha vida". O humorista Herman José imortalizou o momento em que o país discutiu a obra e o seu cariz explícito num sketch do seu programa de fim de ano.  

Como escreveu Augusto M. Seabra, em 2008, é mais que lamentável que um tão grande cineasta – e seguramente com Fassbinder e Pasolini um dos grandes “cineastas do corpo” – tenha sido remetido para um virtual esquecimento, como se só houvesse a recordar, e porque “escandalosos”, O Império dos Sentidos e O Império da Paixão. O crítico do PÚBLICO escrevia a propósito da exibição pela Cinemateca de Noite e Nevoeiro no Japão, o quarto filme do realizador (depois de Contos Cruéis da Juventude e O Cemitério do Sol), afirmando que este foi a matriz da nuberu bagu, talvez a mais política de todas as “novas vagas” dos anos 60, por certo a mais radical na sua abordagem não só da política como da sexualidade. Noite e Nevoeiro no Japão é seguramente um dos grandes filmes políticos e um dos filmes mais marcantes dos anos 60.

 


 


 


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