Podemos começar por aqui. 00.30 a Hora Negra é um filme-missão, um filme com uma missão (e não estamos sequer a falar de eventuais subtextos). É um míssil teleguiado, seco, frio, económico, concentrado num único fim à exclusão de todos os outros: contar a sua história. À imagem da sua heroína - Maya, a agente da CIA que não descansa enquanto não chega ao “fim da linha” - o novo filme de Kathryn Bigelow deixa pelo caminho tudo aquilo que não seja essencial ao seu objectivo e só tem uma coisa na cabeça: acompanhar todo o percurso que levou os serviços secretos americanos ao complexo de Abbottabad onde Osama bin Laden foi morto. Custe o que custar.
É por aí que se compreendem algumas das sugestões que o novo filme de Bigelow, depois de Estado de Guerra, é atípico: habituámo-nos a pensar a realizadora como a grande cineasta moderna do cinema de acção clássico, e 00.30 a Hora Negra não é um filme de acção tradicional. É preciso atravessar duas horas de tortura, investigações, viagens, reveses e burocracias para chegar à notável meia-hora final em que os comandos da Marinha assaltam a casa de Abbottabad. Mas o novo filme inscreve-se sem problemas na linhagem da obra da realizadora - o fascínio pelo profissionalismo discreto dos agentes, pela irmandade silenciosa daqueles que partilham a experiência-limite da guerra, mantém-se intacto na descrição quase meticulosa do processo que levou a Abbottabad. Um filme de guerra sem guerra, se quisermos, ou que transfere a guerra para os corredores de missões diplomáticas e prédios anónimos de escritórios.
00.30 a Hora Negra é, na sua essência, um procedural - o acompanhamento de uma investigação policial tal como nos habituámos a ver nas séries televisivas (de que a iteração mais recente seria CSI nas suas várias declinações) mas que tem também tradição no cinema (pense-se, por exemplo, em Madigan, de Don Siegel). Mas nem aí Bigelow deixa de se apropriar dos códigos e dos cânones: este CSI: CIA insere um olhar feminino através da sua escolha de uma personagem feminina que tem de enfrentar a resistência masculina dos seus superiores - descrita, a certa altura e com o seu quê de condescendência, como “esperta para caraças”, para alguém logo retorquir “mas isso somos todos”.
Maya pode ser o “olhar” do espectador para dentro desta realidade captada “a quente” (e o filme tem qualquer coisa de longo ensaio do new journalism americano, ou não fosse o seu guionista, Mark Boal, repórter aclamado), mas a personagem abre também o filme a outros subtextos, outras camadas. A agente da CIA a que Jessica Chastain dá uma interpretação toda em contenção não está assim tão longe do Ethan Edwards de John Wayne n'A Desaparecida de Ford - alguém que se entrega de alma e coração à tarefa em que se empenhou ao ponto de mais nada existir à sua volta, como se o único modo de chegar ao fim fosse ir ao limite, contra tudo e contra todos. E que tarefa é essa que a obceca para lá de tudo isso? A vingança. A mesma vingança que motiva Ethan Edwards ou o Django Libertado de Tarantino, salvaguardadas as devidas distâncias.
00.30 a Hora Negra não é fácil, não escamoteia, não faz rodriguinhos. Seco, duro, económico, é um filme admirável cuja adesão e obediência às regras do processo o liberta para falar do coração por trás do cérebro, da escuridão por trás das regras. Do heart of darkness que está no centro de muito do cinema americano pós-Vietname - e que consome tudo à sua volta até nada restar a não ser a pergunta: “E agora, para onde vamos?”