A obra Os Cinemas de Lisboa lida por Manuel Villaverde Cabral

Para quem conhece a obra Margarida Acciaiuoli e, sobretudo, o seu estudo decisivo sobre as grandes exposições do Estado Novo nos anos 30 e 40 do século passado (Exposições do Estado Novo, 1934-1940, Livros Horizonte, Lisboa, 1998), reconhece aqui a historiadora e a crítica incisivas da arquitectura portuguesa contemporânea, na qual os cinemas, uma vez mais, estão para a pontuação de uma cidade-capital como os pontos e as vírgulas de uma frase. Igualmente se recordará a abundância crucial das representações gráficas na mostração e no entendimento da arquitectura e da decoração dos edifícios. Descrever é uma coisa; mostrar e apontar são outra diferente, como acontece neste novo livro também. 

Porém, os cinemas – que a autora começa por identificar, de acordo com a citação absolutamente certeira de Roland Barthes (1957), na época de ouro porventura dos cinemas em Lisboa: Je ne puis jamais, parlant cinéma, m’empêcher de penser 'salle', plus que 'film'   são o fio condutor, através da evolução da sua arquitectura externa e interna singulares mas emblemáticas, desde o barracão meio-improvisado em que as primeiras fitas, ainda nos anos 80 do século XIX, eram passadas sem ninguém então adivinhar o que viria a ser o cinema – a indústria cinematográfica e os "filmes de arte" – até às multi-salas do Alvaláxia, a saber, os lugares desse conceito popular re-inventado por Margarida Acciaiuoli que é "ir ao cinema", os cinemas, dizia eu, serão mais, muito mais, do que apenas o objecto da história da sua arquitectura.

Serão o ponto de partida para uma história da própria cidade de Lisboa, como semelhante seria aliás qualquer outra cidade ocidental nessa época, e não só a história do seu urbanismo, como por exemplo sucede com o jogo entre a formação evolutiva dos seus grandes eixos, desde a Baixa até Alvalade e ao Areeiro, com a cidade dos bairros antigos e novos. Não só isso, que não é pouco nem suficientemente conhecido, mas também uma sociologia da capital de um estado ultramarino; uma parte da sua economia: o fundiário, a construção civil e o espectáculo; e uma grande porção do seu pano de fundo político, bem como a sua evolução social e cultural, com o ponto culminante, possivelmente, na Lisboa do Estado Novo, desde os anos 1930 até meados de 1970, que se prolongariam pelo menos por mais uma década até à famosa "entrada na CEE", o tal regresso, quiçá falhado, à "Europa" de onde as Descobertas e o Império – ressuscitados pelas exposições pretendidamente monumentais de Duarte Pacheco e António Ferro – nos tinham afastado durante 500 anos. Foi dos cinemas também que as malhas do império se teceram! 

Pode dizer-se, em suma, que o título do presente livro exprimiria o mesmo que já diz, se não mais, se em vez de falar dos cinemas de Lisboa, se chamasse os "cinemas em Lisboa", apontando para o papel determinante das salas cinematográficas na formação e na evolução contemporâneas da cidade; ou ainda, mais provocatoriamente: "a Lisboa dos cinemas", isto é, a capital – meio-interrompida pela morte de Duarte Pacheco e depois meio-ressuscitada pelos construtores civis mais do que pelos arquitectos – feita, desfeita e re-feita de novo, através dos Centros Comerciais, essa bizarra interpretação dos "mall" norte-americanos, pelas actuais salas, salinhas e saletas de cinema.

"Ir ao cinema": é a primeira vez que esta expressão corrente, compreendida por qualquer um de nós, adquire o seu pleno sentido sócio-cultural, o qual faz de um livro como este uma espécie de "Cinema Paradiso" do imaginário das pessoas da minha geração, crianças e jovens da periferia próxima da capital nos anos 40 do século XX. «Ir ao cinema» exprime melhor do que qualquer conceito técnico a forma dada pelas salas e a sua implantação no tecido da sociedade urbana e o fundo do espectáculo cinematográfico dado, por seu turno, pela diferença que vai dos actuais filmes para crianças, que aterrorizariam qualquer adulto dos anos 50 do século passado, até aos filme de arte e de culto, inventados de algum modo pelo e para o grande movimento cine-clubista do pós-guerra de 1945, hoje algo esquecido, mas do qual eu sou triplo produto acabado, enquanto espectador, crítico e animador que fui imediatamente antes e depois de 1960.

A autora coloca estrategicamente o cine-clubismo, com o seu impacto de mudança e expansão do conceito de "ir ao cinema", a meio, para não dizer no centro, do seu livro, algures no final do capítulo sobre as "grandes catedrais" do cinema da década de 1950, desde o S. Jorge até ao Império, passando pelo Monumental: que nomes tão berrantes para salas de luxo que já não existem ou raramente funcionam, como o S. Jorge resgatado pela câmara municipal como uma espécie de museus da minha adolescência, que efectivamente são!

A esta viragem subtil do "ir ao cinema" seguem-se os bairros, a sua consolidação ou o seu falhanço, onde se fica a saber, por exemplo, por que razão isso aconteceu com o Bairro do Restelo. O cinema do meu "bairro" não podia deixar de ser também mencionado neste livro: era o Cine-Oeiras, que substituíra uma garagem desafectada e fôra, na minha infância, o "Cinema Paradiso" onde vi os primeiros filmes da minha vida. Ignoro se o Cine-Oeiras ainda existe mas, agora, vamos todos necessariamente às mini-salas dos Centros Comerciais com o seu cheiro a pipocas antes desconhecido.

O livro é, pois, muitos e variados livros, todos eles relevantes, informativos e extremamente bem escritos. O livro de história da arquitectura com a sua pesquisa original e virtualmente definitiva sobre edifícios, localizações, empresários, construtores, arquitectos e políticos camarários; o livro de urbanismo sobre esta Lisboa com a qual se fica a conhecer a cidade como nunca, sobretudo para quem vem, como eu, da periferia urbana anterior à motorização em massa, ajuda agora a perceber as nossas próprias preferências residenciais e deambulatórias, todas elas remetendo para o livro seguinte. O da sociologia histórica da capital, com a longa evolução e mudança paulatina do sistema de classes e estratos sociais, os seus gostos e inclinações, reflectindo de longe – graças ao poder iluminante e aglutinador do cinema: as salas e os filmes – as tendências uniformizadoras do nosso mundo, a partir da "meca de Hollywood" com as suas fracas alternativas europeias incansavelmente promovidas pelos cine-clubistas.

E finalmente o livro da esfera política: a política de Salazar, que não gostava nem ia ao cinema, pontuada pelos dois nomes grandes de Duarte Pacheco e António Ferro, ambos prematuramente desaparecidos da cena da Ditadura, mas também de uma outra decisiva política de que raramente se fala, que é a política da Câmara Municipal, bem como dos interesses económicos e sociais cruzados dos empresários, do público e dos burocratas camarários depois do desaparecimento de Duarte Pacheco. E mais livros haveria dentro deste livro cheio de ideias e sugestões que levam os leitores a dobrar os cantos de inúmeras páginas com assuntos de que seria oportuno falar e que constituem outras tantas pistas para desenvolver, desde a história de arte e da arquitectura até à história da cidade e das suas populações, passando pelos arquitectos e a estética citadina, como acontece com o feliz paralelo feito pela autora entre as salas de cinema e os "snack-bares" dos anos 1950 e 1960, mas também pelos empresários e os seus irmãos-inimigos, os cine-clubistas, esses amantes do cinema – mais dos filmes do que apenas das salas!

Daqui resulta um grande número de pontas para puxar das quase-400 páginas do livro. Sobretudo surge dele uma cidade familiar a todos nós e, todavia, difusa, vaga, ameaçando crescer e tornar-se monumental, como o cinema do mesmo nome deliberadamente destruído, mas perdendo-se em caminhos sem destino que não seja fazer escritórios e dar morada a algumas pessoas, prosseguindo com o declínio da capital, dos seus centros e dos seus eixos históricos, em proveito de periferias mais dormitórios do que lugares com "espírito", com cinema!

O livro da Margarida Acciaiuoli termina com uma nota algo melancólica que sinaliza o seu desencanto, mas também o de muitas outras pessoas, com as "alvaláxias". Este desencanto mitigado remete, por seu turno, para os grandes temas da persistente privatização da vida quotidiana. É disto que estamos a falar quando se vê crescer os enormes centros comerciais cheios de gente ao domingo, segundo uma evolução norte-americana que se espalha pelo mundo inteiro e que, inevitavelmente, faz mudar de sentido "ir ao cinema". O público divide-se em públicos e os espectadores são menos e diferentes do que foram ao longo das décadas espalhadas por três séculos que o livro cobre. Como pano de fundo e manifestação aceleradora dessa privatização da vida está, evidentemente, a televisão, da qual a autora acaba por falar pouco, pois quase não é preciso, já que todos temos o sentimento do que ela representou na mudança dos hábitos familiares, sociais e culturais.

Na mesma linha da privatização promovida pela TV, já está hoje também o vídeo – agora são os filmes, sem sala, que vêm a casa de cada um – e o próprio computador, bem como os seus incessantes avatares informáticos e comunicacionais, nos quais se desbarata a outra comunicação do antigo "ir ao cinema". Esta evocação dos efeitos das novas formas de habitar a vida privada remete, por último, para o lugar da casa e do apartamento actuais, esses interiores onde a família e os amigos se fecham, por assim dizer, e constituem a nova preocupação intelectual de Margarida Acciaiuoli, depois deste vasto painel sobre a vida exterior da nossa cidade-capital.


Os cinemas de Lisboa – um fenómeno urbano do século XX

Autor: Margarida Acciauoli

Editor: Editorial Bizâncio (Lisboa, 2012)

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