Foi você que pediu o FMI?
Pode ser que tenha havido uma fuga de informação por falha dos assessores do Governo ou do FMI, que isso pouco interessa. Pode ser até que esta fuga tenha sido minuciosa e estrategicamente pensada para assustar o país e tornar mais aceitável uma proposta no futuro que, sendo dura, está longe de ser radicalmente dura como a que o FMI defende. O que interessa, porém, assinalar é que é absurdo, pouco democrático e ainda menos corajoso que a reforma do Estado seja lançada por nomes para nós tão familiares como Gerd Schwartz, Paulo Lopes, Carlos Mulas Granados, Emily Sinnott, Mauricio Soto e Platon Tinios em vez de ter assinada pelo primeiro-ministro de um Governo responsável pelo presente e pelo futuro próximo do país.
Não admira por isso que, em vez de um documento política e socialmente sustentável, estejamos agora a discutir um relatório técnico, frio e distante. Não admira também que as primeiras reacções dos responsáveis partidários e até de membros do Governo o tratem como um filho enjeitado. Para a oposição, o documento do FMI é um alvo fácil de abater. Basta arregimentar os slogans do costume. Para os ministros é um texto difícil de subscrever. Ao atacar interesses de professores, polícias ou pensionistas, a recomendação é uma bomba-relógio política. Mas se do lado dos sindicatos ou da oposição pode haver nesta condenação tanto interesse político como hipocrisia estratégica, a resposta inicial do Governo tem de ser enquadrada apenas na difícil arte da dissimulação.
Face à liderança do processo de refundação agora assumida pelo FMI, pouco adianta haver ministros a dizerem que as suas recomendações têm erros, ou que em cima da mesa está apenas uma entre muitas propostas que hão-de chegar de outros actores políticos e sociais e de outras instâncias internacionais. Para o que interessa, o FMI não inventou uma realidade contabilística. Quem deu os números aos técnicos do FMI e quem norteou as suas reflexões foram 10 ministros e cinco secretários de Estado. Virem agora dizer que o documento do FMI é apenas um exercício externo pode ajudar o Governo a manter-se neutro. Mas não é e bem o sabemos. Este é o programa que Passos Coelho e Vítor Gaspar gostariam de apresentar. As suas prescrições são a síntese do seu programa político e ideológico.
Apesar de ser marcado pelo pecado original de ter chegado antes do tempo e de colocar o Governo no papel do agente que foge às suas responsabilidades, há nas 75 páginas do documento dados, análises e reflexões às quais o país não pode fechar os olhos. Se as medidas propostas são polémicas e discutíveis, o diagnóstico é útil e consistente. Mesmo que muitas das suas recomendações sejam absurdas, socialmente iníquas e politicamente inaceitáveis, o pano de fundo sobre o qual são construídas mostra sem margem para equívocos que muita coisa vai ter de mudar no Estado para que Portugal possa voltar a ser um lugar saudável e com futuro.
Claro que há nas abordagens apresentadas a marca liberal do FMI puro e duro, muito mais devoto da fé nos mercados do que nos modelos de economia social que estão na base na construção do Estado de acordo com a matriz europeia. Mas a leitura comparativa do que se gasta em funções essenciais como a educação ou a segurança entre Portugal e a média dos países desenvolvidos é arrasadora. As críticas à ineficiência do Estado em relação aos recursos que consome têm de se levar a sério. E a constatação de que, “ao contrário de muitos países da OCDE e da União Europeia, as transferências sociais proporcionam mais benefícios aos que têm mais rendimentos do que aos que têm menos, agravando a desigualdade” não pode passar em claro.
Sendo adverso dos limites da política num regime democrático (uma arte do possível), como base o relatório tem méritos. Méritos que serão facilmente afundados no tom do debate que já se iniciou e que promete continuar. Nenhum país com um mínimo de dignidade aceita ingerências com esta dose de brutalidade. Infelizmente, nem esta verdade, tão velha como o Estado, o Governo foi capaz de perceber.