Tão happy que é a felicidade

O prestígio de David O. Russell é um dos grandes mistérios do cinema americano contemporâneo. Por alguma razão (a que a poderosa máquina de mover influências dos irmãos Weinstein não será alheia) cada novo filme dele cria a expectativa de ser uma coisa de extraordinária importância, com imensos elogios e imensa repercussão na crítica mais “indexada” às rotas dos oscares (que não é, felizmente, toda a crítica americana). Depois vai-se a ver e aquilo não só não tem qualquer importância especial como nem é especialmente bom. É assim há anos, desde que Russell emergiu, nos longínquos 90, como coqueluche do cinema “independente” de tendência Sundance. É claro que se pode dizer que, como Howard Hawks, Russell não se fixa num género e está sempre a saltitar - o filme de guerra em Três Reis, a comédia psicanalítica em I Heart Huckabees, o melodrama de boxe em The Fighter (o mais penoso dos seus filmes). Mas também é claro que, ao contrário de Hawks, nunca passa nada de um filme para o outro, não há uma ideia em que se insista, não há um olhar nem uma mão - não há um estilo, em suma, como se Russell fosse feito pelos argumentos que filma em vez de fazer ele os argumentos, filmando-os.

Este anonimato em traje de gala está inteirinho em Guia para um final feliz. A meio damos por nós a desejar que a história tivesse antes ido parar a uma daquelas comédias de rotina a trouxe-mouxe com Ben Stiller, por exemplo. Daria um filme mais escanzelado, mas provavelmemte mais sincero e até mais ambíguo no tratamento da “normalidade”. Que é a questão central de Guia para um final feliz: toda a gente quer ser “normal”, e toda a gente sonha, logo à partida, com um final feliz (o silver linings do título original é código para happy end). A história de um tipo violentamente bipolar, Bradley Cooper, fixado na mulher que entretanto já não o quer ver nem pintado; e de uma miuda que de forma menos extrema também anda a aprender a lidar com o seu próprio destrambelhamento (está em convalescença de uma crise de ninfomania advinda de uma viuvez inesperada e precoce). Querem ser “normais”, isto é, “felizes”, e o filme vende essa ideologia da “normalidade” e da “felicidade” com todos os pregões que encontra. Ainda assim, isso é um programa de vida, coisa que é com cada um; só que também é um programa de cinema, e isso já é connosco, que somos espectadores. E é todo o programa do filme: a laboriosa construção de um happy end, permanentemente auto-justificado como “natural” e “inevitável” na exacta medida em que se vem a revelar e artificial e arbitrário (o filme acaba ali como podia acabar antes ou depois, e acaba com a mesma limpeza despachada com que se fazem e desfazem casais num último episódio de uma telenovela). Russell faz batota com toda a gente; com o espectador, menos mal, que está habituado; mas com as personagens não se perdoa, nem se perdoa que sejam tratadas como meras peças, instrumentos para um happy end. E são o melhor do filme, aquilo que o aguenta no limiar da visibilidade. Sobretudo o par central (os outros, incluindo de Niro, por mais graça que tenham, são tratados como bonecos, suficientemente coloridos para não se dar por isso). Bradley Cooper não é melhor do que Ben Stiller seria no mesmo papel, mas OK. Já a miuda, Jennifer Lawrence, começa a ficar traquejada na arte de levar um filme às costas (fê-lo por exemplo no celebrado Winter''s Bone). A partir do momento em que entra em campo, para a melhor sequência Guia para um final feliz (o jantar em que conhece Cooper), manda no filme. Ou oxalá assim fosse.

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