A adaptação musical do clássico de Victor Hugo por Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg anda há anos a tentar dar o passo para o grande écrã, a “última fronteira” para uma das obras mais icónicas do teatro musical recente. Agora que aconteceu, o êxito comercial parece estar à mão de semear e já se fala em nomeações para os Óscares - o que, se não é surpreendente (Hollywood adora números de actores “fora da sua zona de conforto”), é no mínimo de lamentar. Os Miseráveis pode ter reunido um elenco de prestígio, uma produção luxuosa, até um realizador com consciência do material que tem em mãos. Mas o que daqui sai é um equívoco de todo o tamanho, cheio de fogo de vista para encher o olho, a tapar a mediocridade inexplicável de um libreto que reduz a obra de Victor Hugo a uma telenovela mexicana e de uma partitura interminável que se percorre em busca de uma melodia que fique no ouvido (não há).
Ciente que nada há de subtil ou de pungente numa história que carrega a traço grosso no melodrama da desgraçadinha, Tom Hooper (O Discurso do Rei) não teve medo e vai atrás: insiste para que sejam os próprios actores a cantar (o que fazem dignamente), filma tudo com um frenesi de filme de acção (câmara à mão e gruas loucas à Amália para a frente e para trás), mostra o dinheiro todo que tem. O elenco entrega-se, sim, mas não pode fazer milagres com personagens mais lisas que uma folha de papel (o Javert de Russell Crowe é exemplar dessa inexistência). A dimensão social do romance, dos desgraçados da vida que lutam contra tudo e todos por um futuro melhor, é completamente afogada por trás das histórias românticas do condenado que refaz a vida a pulso e do romance entre a sua afilhada e o revolucionário fervoroso.
Nada contra os lugares-comuns: muitos musicais de sucesso acreditam neles, e Os Miseráveis entrega-se-lhes de alma e coração, com Hooper, sabendo que não se pode filmar um musical “como no antigamente”, a tentar que a estilização que o palco força resulte enquadrada pelo realismo “teatral” de cenários e figurinos. Mas o cineasta britânico estampa-se ao comprido nessa aspiração à grandiosidade tão excessiva que tomba no patético, ou no interminável assalto audiovisual de música non-stop e climaxes atrás de climaxes; é tudo sisudo, patudo, histérico, pretensioso, manietado por um material de origem que já de si não devia nada à subtileza e que, ampliado para grande écrã, põe a nu todas as suas fragilidades. Por pior que seja (e é francamente mau, apesar do inexcedível profissionalismo de quem o fez) Os Miseráveis tem tudo para ser um sucesso, sobretudo junto daqueles que nunca foram expostos ao musical clássico (em palco ou no cinema). Mas apenas confirma que o único objecto a saber realmente pensar o género nos últimos anos foi o Moulin Rouge! de Baz Luhrmann.