Recordações de um editorUma actriz para um texto

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Fernando Guedes: O Decano dos Editores PortuguesesEntrevista de Sara Figueiredo CostaBooktailors108 págs., 12€Há Muitas Razões para Uma Pessoa Querer Ser Bonita, de Neil LaBute. Encenação de João Lourenço, no Teatro Aberto, em Lisboa

Fernando Guedes, o editor que comprou para o catálogo infantil da Verbo os livros da Anita, já não se lembra se adquiriu os direitos desta colecção numa feira internacional mas lembra-se bem do que é que o levou a querer publicar em Portugal aqueles livros originalmente editados pela Casterman. "Gostava daquelas ilustrações do [Marcel] Marlier, convencionais, muito realistas. Numa altura em que toda a gente achava que os miúdos gostavam era de imagens esquisitas, achei que os miúdos queriam, na verdade, um boneco que fosse tão real quanto possível", explica no livro Fernando Guedes: O Decano dos Editores Portugueses (ed. Booktailors).

O editor, que nasceu no Porto em 1929, foi fundador e esteve na Editorial Verbo durante mais de meio século (até a Verbo passar a integrar o grupo Babel em 2009). A ele se deve a edição da Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, das aventuras do Tintin ou de livros que nos fazem conhecer melhor Portugal como Cozinha Tradicional Portuguesa de Maria de Lourdes Modesto e A Arte Popular em Portugal.

Nunca se esqueceu da primeira vez que foi à Casterman, na Bélgica, porque deu um grande trambolhão na neve. "Quando fui lá tratar do negócio da Anita, era Inverno, e caí num chão carregado de neve; ia partindo uma perna e pensei que o negócio ia correr mal, mas enganei-me", recorda. Os livros foram um sucesso tal que o responsável da Casterman na Feira de Frankfurt costumava dizer que se tivesse mais dois clientes como a Verbo não precisava de trabalhar mais na vida.

Não se incomoda com as críticas relativamente aos clichés machistas que esses livros passavam, da menina educada para ser dona de casa, casar e ter filhos: "Era isso mesmo e era, naquela fase, o que as miúdas queriam. A seguir é que, coitadas, se metem na sarilhada da vida, em que antigamente só estavam os homens. (...) Acho que eram livros francamente saudáveis, onde as meninas eram meninas. E, no fundo, a Anita nunca cresce (...) é um arquétipo, e esse arquétipo continua a funcionar." Fernando Guedes: O Decano dos Editores Portugueses é o primeiro volume da colecção Protagonistas da Edição, que tem por objectivo registar, em formato de entrevista, o percurso de editores, livreiros, tradutores, revisores e designers. As entrevistas são sempre feitas por Sara Figueiredo Costa, jornalista freelancer que mantém desde 2007 o blogue Cadeirão Voltaire, sobre livros e edição, e o blogue Beco das Imagens, dedicado à banda desenhada e à ilustração. Os editores que se seguem são Carlos da Veiga Ferreira, que foi da Teorema e agora é o editor da Teodolito, e Guilhermina Gomes, do Círculo de Leitores e da Temas & Debates.Há duas razões para se ver Há Muitas Razões para Uma Pessoa Querer Ser Bonita. A primeira é o texto, do norte-americano Neil LaBute, retrato impiedoso da superficialidade dos argumentos de quem critica apenas por escárnio maldoso. As frases vivem velozes, como os afectos. São voláteis, como as paixões. São impiedosas, ao oporem forma e conteúdo. A segunda razão, que dá corpo a tudo isto, é Ana Guiomar, actriz de carne, de força, de uma intuição mordaz, que enche um palco com um gesto, uma palavra, um olhar. Uma e outra razão constroem e alimentam a encenação de João Lourenço, estreada no fim de Dezembro, no Teatro Aberto, em Lisboa.

É já a quarta vez que o Novo Grupo visita o universo de LaBute. Depois de Socos: Peças dos Últimos Dias (2001), A Forma das Coisas (2004) e Paisagens Americanas (2004, que juntava Roadtrip, Merge e Land of the Dead), agora o reencontro com um teatro a seco, bruto, sem modos, de uma elegância feita das conversas banais, de quotidiano, como se não fossem dignas de estar em palco. E, no entanto, ao trabalhar dentro dos arquétipos das narrativas teatrais, sugere um confronto directo, sem luvas, entre a realidade das palavras e a brutalidade das consequências.

Assim: Xana (Ana Guiomar) discute com Rui (Jorge Corrula) depois de Carla (Sara Prata) lhe ter contado que Rui havia comentado com Daniel (Tomás Alves) que a nova rapariga da fábrica era um espanto e Xana, sua namorada, apenas normal. O que Ana Guiomar faz com esta premissa, numa primeira cena de antologia, que nos deixa sem fôlego, é mais do que sugere a rudeza desta descrição. E transforma as palavras de LaBute numa acutilante dissecação dos modos de agir em vácuo de uma geração alimentada pela imagem.

LaBute já o tinha feito antes em A Forma das Coisas e A Gorda (apresentada pelo Teatro Nacional D. Maria II, em 2008), manipulando argumentos, torcendo-os, inventando armadilhas onde as personagens caíam por demasiada aproximação à realidade dos espectadores. As gargalhadas da sala podem ser, na maior parte das vezes, nervosas, e interferir com o tempo da própria cena porque pedem que, em resposta, os actores trabalhem por cima da aparente simplicidade dos argumentos. Ana Guiomar fá-lo, ganhando espaço e tempo pelo modo insinuoso como se transforma numa espécie de anti-heroína trágica.

O teatro de Neil LaBute existe na tradição de um humor negro, sádico, profundamente americano, cultivado nas ruas, na vertigem do pragmatismo. Esta peça, na sua mordacidade, deixa-nos ao abandono perante conflitos de ordem doméstica mas, ao fazê-lo, anuncia, com uma estranha sedução, a catástrofe que pode ser esse mesmo quotidiano. Esta actriz surpreende o espectador com a sua entrega (e é apenas a sua segunda peça: já em 2011 nos havia esmagado em Purga, de Sofi Oksanen, também encenada por João Lourenço). Transforma o quotidiano numa poética amarga, desafiando, com a sua intuição, através de olhares intensos, de gestos largos, de pausas dramáticas inesperadas, de uma ocupação do espaço sufocante.

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