A cadeia por dentro e por fora
Os presos estão a saltar os muros das prisões através da fotografia, da grande reportagem, da literatura, do teatro ou do cinema. Visita guiada por quem foi lá dentro para mostrar como é a quem está cá fora.
Não falta tempo, sobra. Há quem tente matá-lo, enchendo o dia de afazeres. De noite tudo se complica. "São muitas horas a pensar, muitas horas a olhar para as paredes", diz a reclusa número 27 do Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo à jornalista Patrícia Nogueira, no documentário Três horas para amar.
Todas as horas estão marcadas por outros naquele espaço limitado, fechado, vigiado. A campainha, os passos no corredor, a chave na fechadura, a porta a abrir. Os mesmos gestos, os mesmos sons, os mesmos rostos. Qualquer coisa que quebre a contínua repetição dos dias pode ser bem-vinda. Qualquer coisa.
A encenadora Luísa Pinto nunca sentiu tantas dificuldades num "casting" como no ano passado, quando recrutou actores nas duas prisões de Santa Cruz do Bispo para levar a cena o Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, transformado em Sicrano de Bergerac por Jorge Louraço Figueira. Diz-lhe a experiência que "uma nesga de liberdade vale ouro". E, atrás das grades, uma quebra de rotina é uma forma de liberdade.
O corte com o exterior é radical. Quem entra deixa o telemóvel na portaria, leva só o necessário. E esse necessário é revistado por um dos guardas que ali estão. Jornalistas ou artistas não deixam de passar pelo detector de metais antes de se confrontarem com os muros altos, o arame farpado, as portas pesadas que abrem e fecham à mesma hora e têm trincos cujos sons se infiltram na mente de cada um.
Ali dentro, tudo remete para "eles", para "outros". De um lado, quem cumpre pena; do outro, quem a aplica.
Como é que se chega? Como é que se chega a quem está intramuros para o trazer, de algum modo, cá para fora? Não tratar os reclusos pelo número ajuda a marcar a diferença em relação a quem ali trabalha, sente Patrícia Nogueira, que no seu documentário se cingiu a quatro mulheres, com as quais teve conversas prévias para ir construindo uma relação de proximidade que lhe permitiu pô-las a falar da vida sexual.
O realizador Tiago Afonso fez um esforço para aprender depressa os nomes todos durante o mês passado com os 80 reclusos do Estabelecimento Prisional de Guimarães que, inspirados pelas Memórias do Cárcere, de Camilo Castelo Branco, exploraram a sua própria reclusão, num projecto apoiado pela Capital Europeia da Cultura de 2012. Criou relações horizontais. "São seres humanos como os outros."
Em 2009, o encenador Hugo Cruz sentiu bem a desconfiança face a quem vem de fora. Tinha à sua frente 32 homens fechados num dos mais sobrelotados e tensos estabelecimentos prisionais do país: o do Porto. Confessa Diogo Silva, um dos reclusos que participaram em Entrado, espectáculo então dirigido por Hugo, no livro homónimo: "Ao princípio, estávamos um pouco de pé atrás, mas depois sentimos que éramos pessoas como eles. Apesar de sermos reclusos, eles conseguiram-nos fazer sentir isso. Chegou a um tempo em que conseguiram pôr-nos à vontade para falarmos de coisas que não falamos com ninguém."
Houve um dia decisivo. À chegada, Cruz, também psicólogo, foi informado de que um dos rapazes se suicidara. "Fizemos dez minutos de ensaio e quis parar. Estavam muito tensos. Eu próprio estava com uma disponibilidade [mental] questionável." Reagiram mal. Sentiam-se, de algum modo, penalizados, injustiçados, abandonados. E ele sossegou-os: "Vocês não fizeram nada de mal. Eu não estou em condições, vocês também não."
A vida, ali dentro, pesa. Há no discurso de quem não pode sair uma espessura que surpreende Hugo Cruz. Tiago Afonso também nota uma "densidade" que nunca encontrou nos seus alunos do ensino superior. Patrícia Nogueira fala até em "grande lição de vida" dada por uma reclusa que encara a vida "com grande paz".
Como qualquer mulher
Maria José Mendes, a "estrela" do documentário de Patrícia Nogueira, apanhou cinco anos de prisão e diz que tem saudades de tudo. "Saudade de tudo, de tudo, de tudo mesmo. Não há nada [de] que eu não tenha saudade. É complicado, muito complicado, mas é assim... Viver um dia de cada vez. O que é que vou fazer? Não vou andar aí às cabeçadas. É viver um dia de cada vez, com saúde, e o tempo vai passando."A saudade maior tende a ter o nome dos filhos. Patrícia Machado, outra das personagens do documentário Três horas para amar, entrou grávida na prisão. "A menina tinha 15 dias e a minha mãe levou-a para a minha família a conhecer. Enquanto ela era pequenina, não entendia. Começou a andar, começou a falar e começou a entender que não queria estar aqui dentro." E verbalizava-o de modo muito claro:
- Mãe, calça os ténis à Joyce. Vamos ao café com o bubu.
- Ó filha, a mãe não te pode levar ao café.
- Abre a porta.
- A mãe não pode abrir a porta.
- És má, mãe!
A jornalista Isabel Nery aprofundou este tema no livro As prisioneiras - Mães atrás das grades, lançado no início do verão (Livros de Seda). Observou as rotinas das mães nas duas prisões centrais femininas portuguesas - Santa Cruz do Bispo e Tires - e em Rhode Island, nos Estados Unidos. Portugal afigura-se-lhe exemplar nisto de tentar manter laços, embora lhe pareça haver uma percepção excessivamente biológica do que é a família: "O que é importante é uma referência maternal e não uma referência maternal biológica."
Isabel Nery conheceu mulheres saudosas dos filhos que cresciam longe e mulheres tomadas pela culpa de os terem perto. E, no meio disso tudo, compreendeu que há até quem tenha filhos para melhor passar o tempo da pena. "Isto não é bom para as crianças, mas, se ela fosse para casa, eu ficava aqui mais sozinha", disse-lhe uma reclusa.
A maior parte das crianças que crescem intramuros tem "falta de estimulação cognitiva , vocabulário pouco variado". Basta olhar para a lista de primeiras palavras citada no livro para compreender a influência daquele universo tão limitado: "prisão", "precária", "bófia", "juiz", "guarda", "passa", "ganza". Seguindo o rasto de algumas, porém, a jornalista da Visão percebeu que estar cá fora até pode ser mais duro do que estar lá dentro.
Poucos pais assumem as suas responsabilidades parentais. Muitas crianças ficam à guarda de avós, tias, vizinhas. Sem família alargada ou vizinhança capaz de os acolher, resta-lhes esperar noutra instituição. Mesmo ao lado do Estabelecimento Prisional de Tires, na Casa da Criança, miúdos dos três aos oito anos vivem uma espera paralela. Um deles explicou a Isabel Nery: "Da janela do meu quarto veja a casa onde vive a minha mãe. Só posso estar com ela duas vezes por semana, nos dias da visita à Casa das Mães, na prisão de Tires. O meu irmão de três anos vive lá, mas a mim não me deixam porque já tenho seis anos."
Vários trabalhos exploraram esta ligação com o exterior, mantida à base de telefonemas diários, visitas semanais, cartas ocasionais. Durante a rodagem do seu documentário, Patrícia Nogueira apanhou por acaso o dia em que uma reclusa ficou a saber que, finalmente, teria direito a receber visitas íntimas, isto é, três horas com o companheiro num quarto. Elisabete Resende deixou-a filmar o telefonema que fez para contar a novidade.
- Olha lá, ficaste contente com a notícia? Eu também fiquei contente com a notícia. A doutora Rosa é um espectáculo.
- ...
- É de hoje a dois meses. Ah! Está bem, mas já viste? Ainda faltam dois meses, mas também quem esperou dois anos, espera mais cinco meses.
- ...
- Para o mês que vem é Fevereiro, mas é mais pequeno, tem dias mais pequenos... por isso. Depois, Março também é um instante. Eu nem quero acreditar!
- ...
- Eu só no dia quando te vir ali na cama à minha espera. Eu te amo, muito, muito."
Não sabemos o que responde o companheiro de Elisabete, que vemos sentada, no gabinete da técnica, agarrada ao telefone. A realizadora não filmou fora da prisão. "O ponto de vista da câmara é o ponto de vista da reclusa." Patrícia Nogueira inspirou-se na curta-metragem Dia de Visita, de Luís Vieira Campos, para este documentário, que é também uma tese de mestrado em comunicação audiovisual. Quis construir "uma nova imagem da identidade sexual" das reclusas, mostrá-las como mulheres que se apaixonam e desapaixonam, que têm relações por amor ou necessidade física, como qualquer mulher que vive em liberdade.
Todos estes trabalhos vão mostrando as pessoas para lá das estatísticas de criminalidade ou reclusão. Amiúde entra o afecto - ou a falta dele.
"Uma certa elevação"
No ano passado, Hugo Cruz desafiou reclusas de Santa Cruz do Bispo a pensarem nas cartas que gostariam de receber. Do que elas foram dizendo resultaram cartas de hipotéticos filhos ou companheiros, mas também cartas que lembram que elas não deixaram de ser filhas, como esta: "E por isso o que te quero transmitir é muita força, coragem e paciência. E sobretudo o meu amor. O meu amor de mãe, que nunca se desvaneceu e que te vai continuar a apoiar e a lutar pela tua liberdade. És e sempre serás a minha menina."Inesquecível Emília, o espectáculo que daí resultou, esteve aberto ao público em geral e acabou por ser apresentado na Assembleia da República. Não estava previsto. Foi um convite de Assunção Esteves. Não é fácil sair com um elenco destes. "Há muitos papéis, muitas autorizações." Hugo Cruz lembra-se de pensar: "Se não saem com um convite da segunda figura do Estado, nunca vão sair". Muitas não saiam há anos: "Foi muito marcante ter uma mulher cigana sentada no púlpito da Sala do Senado. Foi a apropriação daquele espaço por pessoas que não têm poder, não têm voz."
Já tinha conseguido algo que lhe enchera as medidas. Entrado permitira fazer um percurso dentro da prisão. E também fizera cada um exprimir o que ia dentro de si. O terreno de Hugo Cruz é sempre o do teatro do oprimido. Parte do que as pessoas com quem está a trabalhar querem dizer. Por vezes, as palavras custam a sair. Foi o que aconteceu ali.
Arriscou trabalhar a culpa e o perdão. Para ajudar, pediu emprestado um bocadinho do Hamlet, de William Shakespeare. Um recluso chorou ao ouvi-lo ler esta passagem: "Como fede o meu crime, o cheiro chega ao céu. Traz co" ele a maldição mais antiga do mundo, matar o próprio irmão! Não consigo rezar, embora a inclinação seja forte, e a vontade, mas a culpa, mais forte, devora-me o intento, e, como um homem preso a uma dupla tarefa, detenho-me a pensar o que fazer primeiro, negligencio-as ambas."
Para Hugo Cruz, é importante ultrapassar barreiras "meramente lúdicas, meramente ocupacionais". A sua ambição é fazer um trabalho que se desenvolva no tempo, que seja transformador.
As vozes dos reclusos de Guimarães não soaram tão cruas em Novas Memórias do Cárcere, o filme de Tiago Afonso. Uns fizeram voz off, falaram de si, desconstruindo a prisão. Outros optaram por captar o dia-a-dia nas oficinas, no pátio ou noutros espaços do estabelecimento prisional. A maior parte quis encenar pequenas histórias, que são reproduções da vida ali. Uma cadeia regional não tem a carga de uma masculina central, alerta Tiago Afonso, desgostoso com os planos governamentais para continuar a encerrar pequenas e a abrir mega cadeias. "Está mais do que provado que a possibilidade de devolver cidadania fica mais comprometida."
Na primeira fase do projecto, os reclusos entregaram-se a um trabalho de leitura e escrita, sob orientação do mediador cultural e escritor Miguel Horta. Depois, participaram na oficina de realização coordenada por Tiago Afonso. Quando os trabalhos deles foram exibidos, "um irmão de um recluso saiu da sala a dizer que aquilo não era a prisão, era uma brincadeira".
Há mais do que ocupação de tempo nestes projectos que saltam os muros das cadeias. Pode haver, como diz o fotojornalista do PÚBLICO Paulo Pimenta, que já fez diversos trabalhos com Luísa Pinto, uma certa elevação.
Da primeira vez, a encenadora transformou dez reclusas em dez divas, que Paulo Pimenta fotografou e expôs em Matosinhos. "Foi muito bonito ver que as pessoas, mesmo presas, podem fazer coisas." Coisas de que se podem orgulhar. Horroriza-o a ideia de se aproveitar estas janelas para olhar para a prisão como um zoo. "As pessoas que estão cá fora têm de perceber o que é uma prisão, o que é estar lá dentro. E quem está lá dentro pode perceber que pode aproveitar esse tempo." Para crescer, para aprender.
Tiago Afonso, como os outros entrevistados, não se cansa de gabar o empenho dos reclusos: "Aquilo é como se não houvesse mais nada no mundo." Só teme mesmo a "ressaca" que pode sentir quem passou um ano tão intenso à volta de Camilo e de si mesmo. Hugo Cruz tem a ambição de fazer um trabalho continuado com um mesmo grupo para impulsionar, de facto, mudança.
Mas a arte pode mesmo promover a reinserção de reclusos? Luísa Pinto acredita que sim, mas está convencida de que tal implica um "tratamento diferenciado, só inteiramente protagonizado por estruturas e pessoas com afinidades e sensibilidades artísticas e humanas". E só é possível trazendo-os cá para fora, para "uma participação directa e activa, não isoladora e castradora". Quando fez o seu Sicrano de Bergerac, até os donos dos restaurantes de Matosinhos se organizaram para servir as refeições aos reclusos que, misturados com actores profissionais, estavam a representar no Teatro Constantino Nery. No fim do espectáculo, houve muito quem lhe tivesse ido perguntar quem eram uns e quem eram outros. Sente que fez amigos. E comoveu-se ao ouvir desabafos como o Álvaro: "Eu não estava à beira do suicídio ainda, mas estava desiludido e recarreguei as pilhas em termos de confiança na humanidade."