Mesmo depois de descoberto como impostor, "observador da ONU" ainda desperta simpatias
Antigo dirigente da organização internacional diz não ter memória de caso semelhante em 32 anos de serviço
Os seus feitos foram tema de conversa à mesa da consoada. A forma como conseguiu ludibriar milhares de pessoas, fazendo-se passar por aquilo que não era, despertou mais simpatias que indignações. Na blogosfera diz-se que é a personalidade do ano. Como explicar o fenómeno Artur Baptista da Silva?
Docente no Instituto Universitário de Ciências Psicológicas (antigo Ispa), Daniel Sousa pensa que a situação que Portugal atravessa foi crucial: "As pessoas sentem-se injustiçadas, enganadas. Por isso, identificaram-se com Baptista da Silva, quando perceberam que ele, qual Robin Hood, também tinha conseguido enganar o sistema." Quase como se se estivessem a vingar por interposta pessoa.
O facto de o homem bem falante que se apresentava como observador da ONU ter dito, nas palestras que proferiu e nas entrevistas que deu, aquilo que os portugueses queriam ouvir em matéria de renegociação da dívida nacional é outra explicação possível. É essa a opinião de João Quelhas, da Associação Portuguesa de Marketing Político, para quem o sucedido mostra bem "como a sociedade portuguesa se encontra débil". Figuras como esta "alimentam-se da ilusão e da descrença", opina. Quando foi descoberta a impostura, "pensou-se que foi mais um a tentar a sua sorte e poucos ficaram chocados".
"Deu um bom espectáculo, ponto final", comenta, por seu turno, o psicossociólogo Luís Rodrigues, que nesta quadra natalícia ouviu um primo seu desculpabilizar o alegado economista de prestígio internacional: "O gajo até disse umas coisas giras e pôs os pontos nos is." Para Luís Rodrigues, é a permeabilidade de valores numa sociedade centrada no valor do espectáculo que ajuda a explicar a incipiente condenação pública da actuação de Baptista da Silva, que um porta-voz da ONU confirmou ontem não estar ligado a esta instituição. "A sociedade procura ardentemente um guia, um raio de luz", teoriza o psicossociólogo. E não é raro que quem vai tão longe na mentira acabe por ficar convencido do que inventou. O fenómeno até tem um nome, diz o especialista: bovarismo. Acontece quando a pessoa tenta escapar à sua condição adoptando uma personalidade idealizada, como o fez Madame Bovary, a personagem de Flaubert.
Será Baptista da Silva o primeiro impostor da ONU? "Não conheço nenhum caso", disse ontem ao PÚBLICO Victor Ângelo, que foi funcionário da organização durante 32 anos, muitos dos quais como coordenador-residente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). "E ninguém tem essa resposta, pois ninguém nas Nações Unidas tem memória centralizada para este tipo de situações."
Victor Ângelo, que foi secretário-geral adjunto da ONU antes de se reformar há dois anos, nota a originalidade do cartão de visita que o "técnico do PNUD" entregou ao director adjunto do Expresso - usa um velho logótipo da ONU, já em desuso, e tem uma morada de gmail e um número de telemóvel português. Mal leu a entrevista do Expresso da edição de 15 de Dezembro, Ângelo achou duas coisas estranhas: o conteúdo da entrevista e o facto de nunca ter ouvido falar naquele nome. "Sob o ponto de vista do PNUD, não há nada que justifique criar um observatório para a Europa do Sul. [Aqui] há uma crise, mas não uma crise que ponha em causa a paz e segurança internacional."
No Ministério dos Negócios Estrangeiros a entrevista também causou estranheza, pelas mesmas razões. Logo na segunda-feira, 17 de Dezembro, foram enviadas perguntas para Nova Iorque e para Genebra: o MNE queria saber se Baptista da Silva trabalhava de facto para o PNUD e se o observatório citado existia. A meio da semana chegaram a Lisboa respostas preliminares, dizendo que "tudo indicava ser falso", disseram ao PÚBLICO fontes diplomáticas. Na quinta-feira, numa reunião de coordenação, o assunto foi abordado, mas só de passagem: a equipa do departamento multilateral aguardava resposta formal sobre o caso. Antes do Natal, a resposta oficial chegou por telefone: não havia rasto daquele homem, era um impostor.