Do céu caiu Quentin Tarantino para servir à América o seu pecado original
Django Unchained é tudo o que um "filme de Natal" não deve ser: violento, transgressor. Tarantino defende que é um filme para toda a América conhecer o seu "pecado original", a escravatura
O novo filme de Quentin Tarantino estreou nos EUA e há uma pergunta que tem de ser feita: conseguirá a América rir da escravatura? Django Unchained retrata o "pecado original" da América em toda a sua brutalidade: o sangue salpica a brancura dos campos de algodão como uma action painting de Jackson Pollock. Django faz aos donos de escravos o que Inglourious Basterds fazia aos nazis, ou seja, extermina-os. E, mais uma vez, Tarantino quer pôr o público a rir disso (e a perguntar-se: "Será que posso rir?").
Como se tudo isto não fosse provocatório, o filme foi servido aos americanos no dia de Natal.
Nenhum darwinismo cinematográfico poderá traçar uma linhagem entre Do Céu Caiu Uma Estrela e Django, mesmo sabendo que na cabeça de Tarantino, cinéfilo primeiro e cineasta depois, em qualquer momento, há milhares de imagens dos filmes que viu. Django é tudo o que um "filme de Natal" não deve ser: violento e transgressor, sem pedir desculpas por isso. Numa entrevista em 2003, disse que "realizador e público têm uma relação S&M, e o público é o M".
É tentador fazer de Django Unchained o filme anti-Natal, o antídoto contra o convívio familiar forçado do(s) último(s) dia(s). Mas não é difícil imaginar Tarantino defendê-lo como um filme para toda a família: apesar de todos os seus filmes estarem classificados para maiores de 17 anos nos EUA, considera que a iniciação à sua obra deve ser feita aos 12. E depois, cada novo filme gera o mesmo entusiasmo que um produto da Apple. Como escreve a revista britânica Shortlist, "digam às pessoas que Tarantino tem um novo filme, e elas vão vê-lo, quer saibam alguma coisa sobre ele ou não".
Um southern
Sinopse de Django Unchained: dois anos antes da Guerra Civil americana, algures no Texas, um caçador de recompensas, o alemão Dr. King Schultz (Christoph Waltz, o vilão suave e sanguinário de Inglourious Basterds), liberta um escravo, Django (Jamie Foxx, num papel que Will Smith recusou), que pode identificar três homens procurados pela justiça, cuja recompensa Schultz espera recolher. Os dois formam uma dupla e Schultz ensina a Django tudo o que é preciso para ser um pistoleiro. O plano de Django é resgatar a sua mulher, Broomhilda (Kerry Washington), de uma das piores plantações esclavagistas do Sul da América, propriedade do sádico Calvin Candie (Leonardo DiCaprio, no papel atípico de vilão).
Django Unchained é um tributo aos western spaghetti que Tarantino venera, um subgénero que foi a resposta - exuberante, operática - do cinema italiano dos anos 1960 aos westerns de Hollywood. A influência dos western spaghetti no cinema de Tarantino é notória pelo menos desde Kill Bill; simplesmente, o primeiro nível de leitura desse filme, bem como de Inglourious Basterds, arquivou-os sob outras categorias - kung-fu no primeiro caso, filme de guerra no segundo. Os filmes de Tarantino nunca são uma única coisa, mas uma amálgama de subgéneros, provavelmente porque, apesar de ser obcecado com o passado, sabe que não o pode regurgitar da mesma maneira para o público de hoje. "Já não se pode fazer um western spaghetti hoje. Os western spaghetti pertencem ao seu tempo", disse ao New York Times.
Em Django Unchained, o Oeste é, na verdade, o Sul: Tarantino tem brincado com a ideia de o seu western ser na verdade um southern. E também é blaxploitation (o cinema de negros, para negros, que explodiu nos anos 1970) e um filme de época. É uma homenagem a Django, um filme de 1966 de Sergio Corbucci, cujo protagonista, Franco Nero, faz uma breve aparição no filme de Tarantino. Esse Django original foi agora reposto nos EUA, mas o filme de Tarantino não é remake nem sequela. Parece tanto ou mais influenciado por títulos da blaxploitation como Boss Nigger (Jack Arnold) e Mandingo (Richard Fleischer), ambos de 1975 e ambos desprezados pela crítica da época. O primeiro é um buddy movie (como a primeira parte de Django Unchained) com dois caçadores de recompensas negros. Mandingo, que tem vindo a ser redescoberto na última década, propõe uma visão dantesca da escravatura onde ninguém é poupado, sejam escravos ou esclavagistas. Numa entrevista em 1996, Tarantino apontou-o como um dos seus filmes favoritos. Como Mandingo (e como Inglourious Basterds), Django Unchained também parece ser um filme de holocausto, mas um em que o herói, negro, mata "todas as pessoas brancas no filme", como Jamie Foxx disse no programa de humor Saturday Night Live.
O que Tarantino costuma responder quando lhe perguntam que mensagem oferece o seu filme é que não está a tentar passar uma mensagem. "A única coisa que estou a tentar fazer é mostrar como era a América na época da escravatura, no pior lugar possível - o Mississíppi -, largar-vos lá no meio e deixá-los lidar com isso."
Como uma crítica no siteBoxoffice.com notou esta semana, Django Unchained não é só o resultado de como o jovem Tarantino viu milhares de westerns e percebeu o que existia neles, mas também o resultado de como o jovem Tarantino viu milhares de westerns e questionou aquilo que faltava neles.
"Sempre me espantou que tantos westerns pudessem ignorar a questão da escravatura" apesar de a sua acção narrativa ter lugar no mesmo período, disse à Newsweek. "Hollywood não quis lidar com isso porque era demasiado feio e complicado." Quando o New York Times lhe perguntou que filmes anteriores o inspiraram, Tarantino respondeu que não existem precedentes e que isso é que tornou o projecto "tão fascinante".
"O que existe de mais próximo do que estou a tentar fazer são aqueles filmes sobre o índio insurgente que atinge o seu limite e luta contra os opressores brancos. Nos anos 50, em particular, começou-se a lidar com o conflito entre os índios e os brancos nos westerns como forma de exibir uma consciência social. Não podiam lidar com a situação dos negros no cinema nos anos 50, mas fizeram-no de facto através dos índios."
Ele tem respondido às comparações entre Django Unchained e Inglourious Basterds dizendo que, ao contrário do anterior filme, este "não é uma história alternativa - isto é a História da América". E avisa que, por mais cruel que possa ser a representação da escravatura, a realidade foi bem pior. "Intelectualmente, todos nós conhecemos a brutalidade e desumanidade da escravatura", disse na antestreia do filme em Londres. "Mas, depois de pesquisarmos sobre o assunto, deixa de ser intelectual ou apenas um registo histórico - sentimo-lo nos ossos. É algo que nos indigna e queremos fazer alguma coisa sobre isso... Por mais horríveis que sejam as situações no filme, o que realmente aconteceu foi bem pior."
Mesmo antes da sua estreia, Django Unchained foi criticado pelo seu tratamento da escravatura e da questão racial, o que era previsível. Menos previsível é a origem das críticas - não a comunidade afro-americana rejeitando que um realizador branco reclamasse para si uma história em relação à qual assumiu a autoridade máxima; não a esquerda, com o seu zelo excessivo do politicamente correcto; mas a direita.
O que começou como uma falsa indignação relativamente ao número de vezes que a palavra nigger é proferida no filme (palavra tabu para qualquer branco americano que não queira ser acusado de racismo) parece ter evoluído para uma indignação autêntica com a piada de Jamie Foxx no Saturday Night Live sobre como mata todos os brancos no filme. Na imprensa e blogosfera conservadora, o que perpassa é o receio de que Django Unchained represente uma ameaça para os brancos. Aparentemente, uma parte da América não consegue rir da escravatura.