Os maus anos 1970 vivem

Já tínhamos percebido por Precious que, se há coisa que Lee Daniels não é, é discreto. Antes pelo contrário: o evidente, o óbvio, o sobrecarregado são marcas registadas do seu cinema, levadas ao limite neste Rapaz do Sul escandalosamente esgrouviado que adapta um romance dessa sub-estirpe que é o noir tropical. E que não é outra coisa a não ser um filme trash estonteadamente anos 1970 tipo Mandingo, onde assuntos supostamente de grande impacto sociológico eram usados como pretexto para uma titilação sexo-e-violência a piscar o olho aos bons costumes, com um jornalista da “grande cidade” (Matthew McConaughey) a regressar à sua terreola white trash para investigar um possível erro judicial.

Um Rapaz do Sul não está a fingir ser da década de 1970, nem a usar a piscadela de olho irónica do pós-modernismo (ou seja, nada de distanciamento, meta-ficção ou Tarantino aqui): é a real thing, um filme gloriosa e estrondosamente retro, onde tudo, da fotografia saturada em tom de humidade sulista aos figurinos na medida exacta de mau gosto, nos coloca no centro da tensão sufocante e latente dos conflitos raciais e sociais de uma América onde a cor da pele ainda era questão central. O crime nominal e a perversão da justiça daí resultante são meros pretextos para Daniels se comprazer na exploração das contradições evidentes de uma América tão puritana quanto hipócrita, numa radiografia psíquica de um Sul de anedota, numa espécie de pendant com o Morre e Deixa-me em Paz de Richard Linklater que perde sem apelo nem agravo. É que Daniels parece estar a provocar pela provocação, como um menino que se diverte a pôr os adultos a dizer asneiras - ou, no caso, Nicole Kidman a urinar para cima das queimaduras de alforreca de Zac Efron ou a masturbar-se frente a um John Cusack que quase se vem só a olhar para ela (e a actriz, deve dizer-se, submete-se a tais humilhações com a entrega e a dignidade suficiente para sair do filme não só intacta como engrandecida).

A seu favor, Daniels tem uma energia peculiar, uma vontade de cinema que pode não ser bem vista nem bem pensante mas que é, certamente, digna de nota, mesmo que depois a concretização esteja ao nível (canhestro, gongórico) de uma produção da American International pós-Corman. Mas, nessa sinceridade simultaneamente ingénua e escarninha, esconde-se um tropeção gloriosamente desastrado, um daqueles filmes que transcendem as classificações de “bom” e “mau” para se tornar em “o que raio é exactamente isto”, que só não é prazer culpado porque o prazer nunca deve ser culpado. É um grande filme? Não. É um grande filme trash como há muito tempo não víamos. Provavelmente, desde os anos 1970.

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