Elas são chefs num campo de refugiados

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Islam Abuaouda queria ser enfermeira mas o nascimento de um filho com uma deficiência roubou-lhe o sonho. Mais de uma década depois, está à frente do Noor Aida. Várias mulheres que nunca tinham trabalhado dão aulas de culinária a turistas que procuram um verdadeiro almoço palestiniano

A cada duas semanas, Islam Abuaouda abre as portas da sua casa a mais um grupo de desconhecidos estrangeiros. Estamos no campo de refugiados de Aida, um dos três da zona de Belém, na Cisjordânia. E eles batem-lhe à porta para uma experiência gastronómica completa. Não basta provar um prato tradicional palestiniano, não basta fazê-lo numa casa palestiniana, à mesa com palestinianos. Querem cozinhá-los também. Os grupos não podem ser demasiado grandes, a casa é modesta, não vivesse Islam num campo de refugiados construído na viragem da década de 40 para 50 para alguns dos milhares de desalojados com a criação do Estado de Israel.

Se a condição das mulheres palestinianas é difícil, a das que vivem nos campos de refugiados ainda mais. É este o ponto de partida de Sandra Guimarães, que nos falou ao telefone a partir de Belém. Sandra é uma brasileira que há cinco anos trocou Paris pela Palestina para uns meses de voluntariado e nunca mais regressou. Sabia que queria trabalhar com mulheres e angustiava-a ver Belém colonizada por restaurantes de comida ocidental, ver como era difícil para quem chegava de fora provar a verdadeira cozinha palestiniana. Por isso, quando em 2010 conheceu Islam deu-lhe a ideia. O projecto cresceu e hoje tem um nome, Noor Aida.

De início, conta-nos Islam em respostas traduzidas por Sandra, nada daquilo lhe soava bem. A começar por abrir as portas da própria casa a desconhecidos. Além disso, como poderia pedir a alguém que pagasse por um almoço que ainda teria de cozinhar? De qualquer forma, não tinha nada a perder, por isso decidiu arriscar.

Islam é filha da ocupação. Nasceu há 33 anos em Jerusalém mas teve de ser registada do outro lado da fronteira, no campo de refugiados onde vivia a família desde o tempo dos seus avós, obrigados a deixar Beit Nattif, uma cidade junto a Hebron, 50 quilómetros a sul de Jerusalém, com a criação do Estado de Israel, em 1948. A história é a mesma que a de tantos avós que ainda hoje vivem naquele campo. Os pais não tinham estudado mas queriam dar-lhe um futuro. Puseram-na na escola, ela queria ser enfermeira. Aos 16 anos, Ahmed, um homem que tinha acabado de sair de uma prisão israelita, pediu-a em casamento e a família disse-lhe que sim. Ela aceitou, mas impôs uma condição: que pudesse continuar a estudar.

Mas veio o primeiro filho, depois outro, Mohamed. O parto correu mal e ele nasceu com uma deficiência. As circunstâncias acabariam por obrigar Islam, que hoje tem seis filhos, a deixar a escola. Os dias passaram a ser em casa e ela acabou por nunca conseguir exercer uma profissão. Como todas as mulheres que fazem parte do Noor Aida, coordenado por Islam com o apoio de Sandra.

"As escolas da ONU [nos campos de refugiados] garantem a educação das crianças até aos 14 anos, mas não aceitam crianças deficientes porque não têm condições", explica Sandra à revista 2. Para isso há as escolas privadas. Mas essas ficam mais longe e têm um custo difícil de suportar para estas famílias (segundo Sandra, 300 shekels mais 150 para o autocarro, ao todo o equivalente a 90 euros). O resultado é que estas crianças ficam em casa com as mães, que também não podem sair por não terem com quem as deixar.

Hoje, a mais de dois anos de distância, Islam diz que não se arrepende da decisão que tomou. O esquema é simples: a cada sábado chama uma mulher diferente para dar a aula, na cozinha da sua casa, e paga-lhe 50 shekels (mais ou menos dez euros), que são o equivalente a um dia de trabalho na Palestina. Tanto quanto ganha por exemplo Ahmed por um dia de trabalho na construção civil. Em Aida, onde vivem 4700 pessoas, a taxa de desemprego é, nas estatísticas das Nações Unidas, de 43%. Sandra diz-nos que, segundo os habitantes, é muito mais elevada, a rondar os 70%.

Sandra é quem faz a ponte entre Islam e as outras mulheres (à direita de Islam, na foto, está Rania, sua cunhada) e os participantes: vai buscá-los a um ponto de encontro e durante a aula ajuda-os a comunicar com elas, que estão a aprender inglês para que um dia isso deixe de ser preciso. A aula inclui também uma visita guiada por Aida - uma forma de os turistas poderem ver o que é um campo de refugiados. Por tudo, cada participante paga 60 shekels (12 euros). Daí, Islam tira ainda o necessário para os gastos com os almoços e o resto vai para uma caixinha.

O dinheiro serve para várias coisas. Organizar dias diferentes para as crianças com deficiências do campo de Aida é uma delas. Da última vez pegaram no dinheiro que tinham andado a juntar, alugaram um autocarro e levaram-nos a um aquaparque em Hebron, com as famílias. E também já conseguiram dar a uma das famílias os 300 shekels (60 euros) que faltavam para uma cirurgia que os pais não tinham como pagar.

Além das aulas de culinária, também é possível ficar-se hospedado em casa destas mulheres (nas que têm um quarto disponível, que não são todas, algumas têm apenas uma divisão). Por uma semana, um mês, o tempo que for preciso. O preço é 60 shekels por noite, pensão completa. E para este Natal Sandra ajudou Islam e as outras mulheres do Noor Aida a fazerem um livro com as receitas das aulas para vender aos participantes. Não tarda, Sandra terá de deixar a Cisjordânia, é-lhe cada vez mais difícil conseguir novos vistos. Antes que isso aconteça, provavelmente no próximo ano, está a tratar de deixar tudo pronto para que Islam consiga dirigir o projecto sozinha. Está a aprender inglês e a usar computadores e a Internet.

O objectivo é que o Noor Aida se torne auto-sustentável e que dê às mães do campo de refugiados de Aida as ferramentas para construírem um futuro melhor. Sandra não se esquece do que Islam lhe disse numa das primeiras conversas que tiveram: "Não é de ajuda que eu preciso, é de um trabalho." O grande projecto de Islam agora é abrir uma pequena creche para as crianças portadoras de deficiências do campo de refugiados de Aida. Para que convivam com outros meninos em vez de passarem uma vida em casa e para que as mães consigam finalmente ter tempo para dedicar a si próprias.

a http://noorweg.wordpress.com/

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