Conselho Nacional de Ética arrasa bancos privados do cordão umbilical
O modelo privado dos bancos de conservação do sangue e tecido do cordão umbilical é duramente criticado pelos especialistas, que acusam estas empresas de "prometer o que não podem cumprir"
A conservação do sangue e tecido do cordão umbilical e placenta em bancos privados "assenta num modelo comercial", por oposição aos "princípios do altruísmo" subjacentes aos bancos públicos. Tem também "critérios de selecção e qualidade menos estritos" e "promessas de aplicações irrazoáveis". As críticas estão no parecer divulgado ontem pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) e o Comité de Bioética de Espanha, que decidiram emitir uma posição conjunta sobre esta matéria.
"Não é um ataque, é antes uma crítica aos bancos privados e, ao mesmo tempo, a defesa da opção pelos bancos públicos", explica Miguel Oliveira da Silva, presidente do CNECV. Consciente das "dificuldades" que o banco público (Lusocord) enfrenta actualmente - encontra-se em fase de reestruturação, após a identificação de uma série de irregularidades no seu funcionamento -, Miguel Oliveira da Silva refere que esta defesa está dependente de uma aposta nesta estrutura. "É preciso resolver estas dificuldades imediatamente e reforçar o banco público a todos os níveis, desde o logístico aos recursos humanos e financeiros", avisa.
Não ao modelo comercial
O parecer do CNECV não questiona a "utilidade clínica" da conservação das células estaminais presentes no sangue do cordão umbilical em algumas situações, como é o caso dos transplantes de células da medula óssea ou nalgumas doenças hematológicas malignas e benignas. Porém, no caso da promissora aplicação a outras doenças - como as degenerativas como Parkinson, por exemplo -, os vários peritos defendem que "a sua validade científica e utilidade potencial não estão ainda estabelecidas, e o seu uso permanece experimental". As reservas sobre os bancos privados não são inéditas e o próprio parecer refere que este tipo de "negócio" é proibido em países como França e Itália.
No plano da argumentação, os especialistas - que ouviram representantes de duas empresas privadas e do Lusocord - estabelecem as diferenças entre os dois modelos. E estas são óbvias. "A conservação em bancos públicos assenta nos princípios do altruísmo, da gratuitidade, da confidencialidade e da máxima qualidade", lê-se no parecer agora divulgado. Do outro lado, temos um negócio "assente num modelo comercial, com critérios de selecção e qualidade menos estritos, promessas de aplicações irrazoáveis (tratamento de doenças comuns da vida adulta, quando a conservação se faz a 20-25 anos), estratégias de marketing agressivas e pouco transparentes, dirigidas a um público numa fase particularmente vulnerável da sua vida".
Sobre as tais promessas "irrazoáveis" o geneticista Jorge Sequeiros, um dos relatores do parecer, é claro: "Prometem o que não podem cumprir." "Alguns chegam mesmo a usar o termo seguro de vida", critica o especialista. Na lista das promessas estão, por exemplo, hipotéticas respostas para doenças (diabetes comum ou degenerativas) que só surgem na idade adulta, isto quando o período de conservação das amostras é de 20 a 25 anos.
1500 euros por amostra
Por outro lado, um dos problemas mais graves está relacionado com os "pacotes" que mais recentemente começaram a ser vendidos por estas empresas e que incluem uma "bateria" de testes genéticos aos recém-nascidos para obter dados sobre eventuais susceptibilidades (desde incompatibilidades alimentares a doenças hereditárias). "São testes que, nalguns casos, têm um valor preditivo muito reduzido, para não dizer nulo", alerta Jorge Sequeiros. Há uma empresa que promete, por exemplo, um rastreio a nada menos que 101 doenças, e algumas delas são detectadas com o "teste do pezinho" que é feito a todos os bebés.
Além disso, segundo Jorge Sequeiros, há ainda outra preocupação: os dados dos bancos públicos mostram que apenas entre 20 a 40% das amostras colhidas têm "qualidade" para ser utilizadas, isto apesar de os bancos privados receberem - na maioria dos casos por valores que ultrapassam os mil euros - por todas as amostras colhidas.
O geneticista lamenta ainda que este negócio esteja a competir com os bancos públicos, "retirando do circuito público amostras que poderiam ser usadas em pessoas que precisam, e ainda há muitas crianças e adultos que não conseguem um dador compatível".
O CNECV faz 16 recomendações no seu parecer. De uma forma clara e inequívoca, recomenda que se deve "promover a doação altruísta, gratuita, de sangue de cordão, do próprio cordão e placenta, para uso em transplantes alogénicos [de dador imunologicamente compatível]". E, por outro lado, "desincentivar" os apelos comerciais à criopreservação para uso autólogo (do próprio), que prejudica "o bem comum".
Outra das recomendações preconiza que a colheita de sangue e tecido do cordão umbilical seja feita como rotina em todas as grávidas "para um banco público, sempre com a possibilidade de recusa por parte da mulher" e mediante consentimento informado. Por fim, o CNECV defende ainda que, em caso de indicação clínica provada, deve ser permitido que as amostras doadas a bancos públicos sejam usadas pelos próprios ou familiares.
As duas empresas ouvidas para o parecer do CNECV já reagiram. Em comunicado, a Crioestaminal comenta que o documento "contém alguns argumentos ou frases menos felizes, como já vem sendo hábito" e recorda que a empresa está devidamente acreditada, cumprindo critérios de qualidade internacionais. A empresa reafirma ainda que defende uma colaboração "do sector público e privado nesta área".
"Nesta actividade, já estamos habituados a este tipo de pareceres", reage Sílvia Martins, sócia fundadora da Bebé Vida, garantindo também que esta empresa "não faz promessas que não podem ser cumpridas". De resto, a responsável também defende que "os bancos públicos e privados devem coexistir" e admite ainda que outras empresas têm cometido excessos na publicidade feita às células estaminais, como se verificou recentemente com um polémico anúncio de televisão que foi retirado.
Marika Bini, médica que trabalha na Bebé Vida, não concorda com o parecer. E observa: "Os bancos privados fazem muito sentido no campo da medicina regenerativa." Esta apoia-se nas células estaminais do próprio indivíduo.