Quantos corpos são precisos para fazer Afonso Henriques?

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David Herminda Lovelle (em cima), um dos actores que interpretam D. Afonso Henriques na curta-metragem em que João Pedro Rodrigues quis lançar um olhar sobre o cinema DR

A curta-metragem de João Pedro Rodrigues O Corpo de Afonso filmaa procura de um actor para encarnar o primeiro rei de Portugal. Foi uma encomenda da Guimarães 2012

Um filme que é uma impossibilidade. Se o primeiro rei de Portugal foi retratado durante séculos como um gigante de figura imponente, um homem não basta para lhe dar corpo. Esse é o dilema de João Pedro Rodrigues em O Corpo de Afonso, um cineasta à procura de um actor para encarnar o mito. No fundo, é isso que acontece em todos os filmes, só que não o vemos.

Aqui estamos nos bastidores. Mais do que sobre a história do país, este filme é um olhar sobre o cinema. Em particular, foca-se na tarefa de encontrar um actor para ser cara, voz, corpo de um personagem. Sendo um objecto artístico que vale por si, O Corpo de Afonso acaba, por isso, por abrir uma porta sobre o próprio trabalho de João Pedro Rodrigues, como se o víssemos a concretizar a sua metodologia de escolha de um actor. "Acho sempre fascinante essa procura", justifica o realizador de O Fantasma.

Quando escreve um filme, o cineasta procura, ao mesmo tempo, os actores. Às vezes, as personagens que imaginou "acabam transformadas pela pessoa que encontro para o papel", explica. Isso é o que vemos nesta obra, com o método João Pedro Rodrigues posto em evidência, numa sessão de casting pela qual passam David Herminda Lovelle (na foto) e mais de duas dezenas de actores, prontos para serem D. Afonso Henriques.

Porém, a personagem que aqui se procura não foi criada por Rodrigues, é uma figura histórica, mitificada. D. Afonso Henriques é descrito por alguns documentos como um homem enorme para o seu tempo. Segundo relatos da época em que D. Manuel I mandou transladar os seus restos mortais para o actual sepulcro na Igreja de Santa Cruz, em Coimbra (no século XVI), o primeiro monarca teria dois metros de altura e meio metro de largura. Três séculos mais tarde, em plena guerra civil, D. Miguel terá mandado abrir novamente o túmulo, confirmando a imponência do primeiro rei.

Tudo isto pode ser verdade ou apenas um mito. Em 2006, um grupo de investigadores em antropologia forense tentou abrir o túmulo de D. Afonso Henriques para estudar os seus restos mortais. A operação estava autorizada e tinha até data marcada, mas, umas horas antes do seu início, foi cancelada por decisão superior. Como "foi recusada essa tentativa de investigação", o cinema assume o seu papel de contador de mitos. É assim desde The Man Who Shot Liberty Valance, de John Ford.

Esta investigação cinematográfica sobre o corpo do primeiro rei não resulta em frutos inequívocos como os que esperamos da ciência. Em vez de um homem para ser mito, temos vários. Mais de duas dezenas de actores que são uma parte de D. Afonso Henriques. O resultado final no filme de João Pedro Rodrigues "é uma espécie de corpo com muitas cabeças", ilustra o realizador. Afonso Henriques não é ninguém e é, ao mesmo tempo, todos aqueles homens e corpos diferentes.

O Corpo de Afonso estreou na terça-feira em Guimarães, numa co-produção da Capital Europeia da Cultura (CEC). A curta-metragem (30 minutos de duração) é a penúltima da série Histórias de Guimarães que incluiu dez filmes de cineastas portugueses e que será encerrada no dia 27 de Dezembro, com a estreia de A palestra, de Bruno de Almeida.

A encomenda da CEC tinha como única contrapartida que o tema fosse vimaranense. A rodagem foi, de resto, quase integralmente feita fora de Portugal. A equipa de João Pedro Rodrigues esteve em Vigo, na Galiza, a fazer o casting. A decisão foi tomada pela proximidade linguística entre o galego e o galaico-português que se acredita ter sido falado no tempo de D. Afonso Henriques. Os actores falam todos em galego e é em galego que contam as suas histórias.

São esses actores que acabam por trazer o filme para os dias de hoje. Durante o casting, o realizador colocou um conjunto de questões aos participantes e foi encontrada uma resposta comum a quase todos: "Desemprego".

"Isto revela o tempo e o estado do mundo", sublinha João Pedro Rodrigues. Aquelas pessoas tinham respondido a um anúncio para um casting e estavam, no fundo, à procura de trabalho. Professores, instrutores de ginásio ou strippers, em comum tinham o facto de estarem no desemprego. E por muito que a situação retratada seja em Espanha, ela "é igual ou semelhante à situação portuguesa, em que as pessoas não têm trabalho e não sabem o que hão-de fazer", diz João Pedro Rodrigues. O Corpo de Afonso tenta, por isso, "falar também do presente". E estes problemas são mais palpáveis do que qualquer mito.

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