“O Desconhecido do Norte-Expresso” (“Strangers on a Train”), de Alfred Hitchcock (1951)
Seguimos dois desconhecidos nas suas chegadas independentes a uma estação de caminho-de-ferro, mas não há nenhum fragmento de diálogo que nos sirva de apresentação das personagens, que hão-de ser as principais
1951 foi o ano de estreia de “Um Eléctrico Chamado Desejo”, de Elia Kazan, que já aqui apresentámos. Mas foi-o também do filme de hoje, “O Desconhecido do Norte-Expresso”, de Alfred Hitchcock. Os leitores habituais destas crónicas, que os há, e em crescimento virtualmente exponencial – em manifesto contraciclo com os resultados da economia nacional – por certo estarão recordados de que já abordámos nestas crónicas outras obras do mesmo autor.
Para benefício dos leitores mais distraídos, que os há, e em crescimento virtualmente exponencial – em consequência dos resultados da economia nacional – relembramos as brilhantes resenhas sobre “Rebecca” (1940), “Um Barco e Nove Destinos” (1944), “A Casa Encantada” (1945), “A Corda” (1948), “A Janela Indiscreta” (1954) e “A Mulher que Viveu Duas Vezes” (1958) que, apesar de serem coisas do passado, são aqui ressuscitadas magicamente pela actual tecnologia do hipertexto. Ora digam lá se não é uma verdadeira maravilha (principalmente quando é tudo de graça)!... É comovente conviver com o futuro nos nossos dias: ver o nível de vida descer de dia para dia, ter dificuldade em pagar as contas e produzir alegremente conteúdos que podem ser lidos e reproduzidos até ao infinito sem qualquer espécie de remuneração... É verdadeiramente fabuloso!
Mas voltemos ao felizardo Hitchcock, que viveu numa época em que recebeu dinheiro pelos seus filmes, já que não era possível “sacá-los da Net”. Começo por chamar a atenção dos cinéfilos para a forma exclusivamente visual como Hitchcock conta o início da história. Seguimos dois desconhecidos nas suas chegadas independentes a uma estação de caminho-de-ferro, mas não há nenhum fragmento de diálogo que nos sirva de apresentação das personagens, que hão-de ser as principais: nada de acompanhantes que se despedem, nada de trocas de informações que caracterizem e distingam aqueles dois homens entre muitos que circulam e embarcam.
Hitchcock chega ao ponto de nem nos deixar estudar os seus rostos, material de leitura por excelência para interpretarmos o estado de espírito de alguém. Nada. O enquadramento exclui as cabeças e os ombros dos protagonistas, Guy Haines (Farley Granger) e Bruno Antony (Robert Walker, no seu maior papel), apenas vemos dois fatos em movimento e só nos podemos agarrar a dois traços distintivos e simbólicos: dois pares de sapatos. Os discretos sapatos pretos de um e os exuberantes sapatos de duas cores, brancos e (provavelmente) castanhos, de outro — ficam assim definidos os caracteres dos respectivos donos, que entram na carruagem, um após outro, e o que se senta toca, por acidente, no sapato do que já estava sentado. A câmara mostra, finalmente, os seus rostos, estão apresentados os desconhecidos, um ao outro, e a nós, espectadores. Começa a história de “Strangers on a Train”.
Há outras cenas a reter, como a do carrossel, a do reflexo dos óculos, a da partida de ténis em que todos os espectadores seguem a bola com os movimentos de cabeça, excepto um, mas, por ser menos evidente, imensamente mais subtil, a ponto de poder perder-se numa visão mais superficial, quero apontar um momento que serve de síntese ao que Hitchccok deu ao cinema e ao que Robert Walker lhe poderia ter dado, não fosse este o seu penúltimo filme: depois do almoço no compartimento de Bruno, logo após a saída de Guy, Bruno faz menção de devolver ao tenista o seu célebre isqueiro com a inscrição “A. to G.”, mas desiste e deita-se no sofá, virado para cima, meditando, e diz: “Crisscross...”. Apenas isto: “Crisscross...”. Vejam e revejam esse momento. Entendam o que ele quer dizer. Mas apreciam como o diz e digam-me se conhecem exemplo de se poder dizer mais com uma palavra do que eles (Walker e Hitchcock) dizem.