Anabela Moreira, uma infiltrada na comunidade piscatória das Caxinas
De Obrigação, curta de 55 minutos, João Canijo partiu para É o Amor (Obrigação), uma longa de 140 minutos que se estreia hoje em Vila do Conde. Uma actriz infiltrou-se entre as mulheres das Caxinas
"Ela"...", diz Anabela Moreira quando fala de Anabela Moreira: "Ela". Quem é ela, com os seus monólogos de perda frente a uma câmara de vídeo?
De quem são as confissões amargas de uma aprendiz solitária, na escola da vida de mulheres que, ao contrário dela, Anabela, parecem bem realizadas no amor? (Reafirmam, aliás, esse estatuto quando se põem em marcha, nas Caxinas, a caminho da sua actividade com o peixe, activando o karaoke na carrinha, as canções de Zezé di Camargo das suas vidas...) Anabela Moreira no meio delas: uma actriz que não acredita no sentido de ser actriz, uma mulher que já não habita a bolha do amor, porque já lá esteve e furou-a, que inveja o estado em que estão Sónia e as suas companheiras maiores do que a vida.
"Eu sou como uma crisálida, nem sou uma coisa nem outra", responde a actriz. Isto é: nem é apenas personagem, nem inteiramente ela própria. "Mas também sou aquilo, também sou aquela Anabela. Há muitas coisas que também sinto, como o pânico do abandono. Admiro as pessoas que vivem na bolha do amor - eu rebentei essa bolha. Tudo isto [a sua presença no filme] partiu de questões minhas. Aproximo-me daquela Anabela, daquela forma de ser. Mas não sou só aquilo. Ou já fui aquilo. E o João aproveitou isso."
O João é o realizador João Canijo. E a pergunta era quem é a Anabela Moreira em É o Amor (Obrigação), que hoje se estreia em Vila do Conde (duas sessões simultâneas, sala grande e sala pequena do auditório municipal, 22h), na sede do Festival Internacional de Curtas que encomendou o filme. Canijo começa por responder: "A Anabela é uma infiltrada".
Para um filme sobre as mulheres da comunidade piscatória das Caxinas, o realizador avançou armado com uma actriz. Por duas razões, argumenta. Uma de "natureza prática, porque com a Anabela, conhecendo-a, com aquele dom camaleónico que ela tem, sabia que o resultado seria sempre mais interessante. Sem ela não conseguiria chegar àquelas mulheres num curto espaço de tempo". E outra de natureza "conceptual": não é só um documentário sobre uma comunidade, "passa a ser um filme sobre a identidade, não se sabe exactamente quem é aquela mulher, uma actriz à procura da sua identidade e da identidade da sua personagem, e um filme sobre a confiança."
Canijo enviou a sua actriz para trabalhos preparatórios. Estágios de que ele tanto necessita para os filmes, que cada vez mais complexificam os processos e chegam a resultados que borram o sublinhado "ficção" e "documentário". Estágios de que a actriz precisa também (foi viver para o Bairro do Padre Cruz antes de Sangue do Meu Sangue, engordou em Boticas antes de Mal Nascida...) para aliviar a "insegurança": chegar aos limites é a forma de garantir que responde à altura da proposta "de amor" de um cineasta.
E Anabela lá foi, com câmara de vídeo, para aprender as rotinas de quem é mestre e espera os barcos com os homens que chegam da pesca. A forma como ganhou confiança de Sónia e das companheiras desta, o que ouviu no quotidiano dessas vidas, o que filmou, tudo isso alimentou a "ficção" do "documentário". A rodagem seduziu a realidade para que acontecesse de novo. A infiltrada serviu, palavra da própria, de "maestro", levando as "personagens" e situações a repetirem-se. "Eu sei perfeitamente o que elas disseram e contaram antes, e tive de fazer com que elas voltassem a dizê-lo."
Quem foi a Anabela Moreira durante esse processo é, naturalmente, uma questão. Mas a ausência de resposta é a própria experiência do filme.
"Para me aproximar das pessoas e tirar delas o que o João quer, não podia colocar-me como Anabela Moreira, senão elas fugiam. Tive de encontrar em mim - é intuitivo - uma Anabela que não fosse apenas eu nem uma personagem, mas algo em construção." Quem foi a Anabela que as mulheres de Caxinas conheceram? "É complicado encontrar-me com as pessoas uma vez a rodagem acabada. Durante o trabalho há sempre promessas de amizades eternas, mas quando há hipóteses do regresso a essas pessoas, corto sempre. Não as posso enganar: é como se eu tivesse perdido uma memória, a rede de afectos. Não posso corresponder às expectativas da Anabela que elas conheceram. Eu sou aquilo, mas não sou aquilo em absoluto. Agora [para a estreia em Guimarães] vou encontrar-me com elas. Gosto muito delas. Mas quem elas conheceram não é toda a Anabela."
É por isso que o filme de 140 minutos chamado É o Amor (Obrigação) leva título que complica mais do que o aberto Obrigação de 55 minutos que Vila do Conde viu em Julho. Não é como uma versão mais longa e mais curta do mesmo. É como se de um para o outro o bicho se metamorfoseasse. O que se viu em Julho era habitado por uma potência, algo de puro, se é que isso existe, pela brevidade, pela sugestão. Havia uma comunidade de mulheres à espera do regresso dos seus homens do mar, e uma mulher entre elas, uma actriz, cuja perda, exposição e aprendizagem eram sugeridas. Engrandeciam-se as mulheres, grandes e em marcha, como a pura aventura de um documentário quase nada perturbado pelo elemento que ali penetrava.
O que agora acontece, e que inclui novo material, parte dele rodado depois de Obrigação (os monólogos de Anabela Moreira), é precisamente a perturbação, uma excitação mútua entre "ficção" e "documentário", uma presença puxando pela outra, tornando tudo construção. Uma experiência de espelho: eis o que todos fazemos connosco próprios.
"Elas são actrizes na vida", diz Anabela sobre as mulheres de quem se aproximou em Caxinas. "São assim perante uma câmara ou sem a presença de uma câmara. Vivem numa bolha romântica. Tratam os seus homens, quando eles regressam da pesca, como uns reis, com a melhor lingerie... Desempenham o papel de esposas perfeitas. Têm de criar o seu próprio guião para que tudo funcione."
E quem escreveu o guião de Anabela Moreira? "É um exercício de exposição, sim, são os meus dramas. Se calhar, quando vir o filme vou entrar em recusa, e dizer que não sou eu. Se calhar vou dizer isso por vergonha... porque vou gostar de acreditar que sou mais do que aquilo."