Ravi Shankar Morreu o músico que nos fez ouvir o Oriente
Conquistou o mundo pela forma virtuosa como tocava sitar e transformou-se no "padrinho da world music", como o apelidou George Harrison, dos Beatles. Morreu ontem
Mestre do sitar, compositor, responsável pela aproximação da música oriental à ocidental, "o padrinho da world music", como lhe chamou George Harrison, Ravi Shankar morreu ontem, em San Diego, nos Estados Unidos, onde residia. Tinha 92 anos. O pai da cantora Norah Jones e da tocadora de sitar Anoushka Shankar tinha há anos problemas de saúde.
Familiares relataram que se havia submetido a uma cirurgia para substituir uma válvula cardíaca na última quinta-feira, mas não melhorou. "Não suportou o esforço da operação. Estivemos ao lado dele quando morreu", descreveram a mulher Sukanya Rajan e a filha Anoushka. O primeiro-ministro indiano lamentou "o desaparecimento de um tesouro nacional."
Era evidentemente um embaixador da música tradicional indiana. Se durante décadas havia um imaginário sonoro da Índia, ele existia a partir da música de Shankar. Ainda hoje, por mais simplificador que seja, o seu nome é sinónimo de "música indiana". Mas pelo seu sitar ecoava todo o Oriente. O virtuosismo fazia-o transcender geografias e linguagens musicais. A sonoridade que extraia era hipnótica. Quando tocava fazia-o com envolvência, como se o seu corpo se confundisse com o instrumento, sucessão de movimentos de improviso, sinuosidade e muita repetição.
A última vez que subiu ao palco foi a 4 de Novembro, em Long Beach, na Califórnia. Na véspera de se submeter à operação foi nomeado para mais um Grammy, os galardões da música mais importantes nos Estados Unidos, pelo mais recente álbum The Living Room Sessions Part 1.
A visibilidade que adquiriu no Ocidente, em parte, deve-a a George Harrison, quando se conheceram em 1965. Na sua companhia, Harrison aprendeu a tocar sitar e, mais importante, deixou-se absorver pelo ambiente da cultura da Índia. Essas marcas estão presentes em álbuns dos Beatles como Revolver (1966) e Stg. Pepper"s Lonely Hearts Club Band (1967), na produção a solo de Harrison pós-Beatles, mas também noutras bandas rock (Doors, Kings, Stones ou Animals) dos anos 1960 que, umas vezes por causa da sonoridade do sitar, outras porque se deixaram guiar pela filosofia exótica que a música evocava, acabaram por ser influenciados por Shankar. É nessa altura que participa em três festivais (Monterey, Concert for Bangladesh e Woodstock) que lhe dão mais fama.
A última vez que Harrison e Shankar colaboraram foi em 1977, quando o primeiro produziu Chants Of India do segundo. Mais tarde, Harrison haveria de dizer que Shankar era o "padrinho da world music", uma menção que faz algum sentido, principalmente se contextualizada numa época em que o interesse por músicas não-ocidentais era emergente.
Shankar foi realmente um dos primeiros músicos não-ocidentais a obter uma visibilidade alargada no Ocidente, intersectando e influenciando géneros musicais diferentes como o rock, jazz ou, nas últimas décadas, as expressões ligadas à electrónica ambiental ou de dança, abrindo caminho para que a chamada world music vingasse e criasse um circuito próprio.
Mas ao contrário do que talvez se possa imaginar, o guitarrista dos Beatles não foi o primeiro músico ocidental a procurar os ensinamentos de Shankar. Em 1952 já havia tocado com o violinista Yehudi Menuhin, com quem viria mais tarde a gravar álbuns: West Meets East (1967), West Meets East vol.2 (1968) e Improvisations: East Meets West (1977).
Essa paixão por misturar diferentes culturas é um dos seus legados. Colaborou com o flautista Jean-Pierre Rampal e com o lendário saxofonista e compositor do jazz John Coltrane, que tinha grande fascínio pela música e filosofia da Índia no início dos anos 1960. Encontraram-se diversas vezes nessa época, tendo Coltrane recebido ensinamentos de Shankar, antes da morte daquele em 1967. Não parece acaso que o filho de Coltrane, também músico de jazz, se chame Ravi.
Também colaborou com diversos músicos japoneses em East Greets East (1978) ou com o americano Philip Glass, figura nuclear do minimalismo, no álbum de ambos, Passages. Para além das colaborações e das digressões como tocador de sitar, também se distinguiu como compositor de música para filmes (incluindo o filme de Richard Attenborough Ghandi, em 1982), para dança e para concertos de orquestra.
Ravi Shankar, de seu verdadeiro nome Robindra Shankar Chowdhury, nasceu a 7 de Abril de 1920, em Varanasi, na Índia, no contexto de uma família de músicos e bailarinos. A sua primeira paixão foi, aliás, a dança. Mas em 1938 desistiu da potencial carreira como bailarino para começar a estudar sitar com o professor Allauddin Khan. No ano seguinte começou a dar recitais públicos e a compor para dança e cinema. Até 1948 manteve-se em Bombaim e Nova Deli, começando a actuar fora da Índia, a meio da década de 1950. Entre 1955-59 compôs para o conhecido realizador Satyajit Ray, nomeadamente para a clássica Trilogia de Apu.
Depois de se ter tornado cúmplice de Harrison, a sua fama disparou. Em 1969 escreveu uma autobiografia (My Music, My Life) e dois anos mais tarde, a pedido da London Symphony, compôs um concerto que estreou no Royal Festival Hall. Para lá da sua carreira clássica como músico, nunca deixou de experimentar noutros campos. Os puristas - principalmente no seu país de origem, como costuma acontecer nestes casos - não lhe perdoaram, acusando-o de se submeter às músicas e regras ocidentais.
Em 1981, defendia-se desta forma: "Na Índia nem sempre sou bem-visto, mas isso acontece porque misturam a minha identidade como músico e como compositor. Como compositor, tentei tudo, inclusive música electrónica e de vanguarda. Mas, como tocador de sitar, sou um clássico, um ortodoxo, que preserva imenso a herança do que aprendeu."
Ao longo dos anos foi acumulando prémios e condecorações em todo o mundo e nos últimos tempos dividia o seu tempo entre a Califórnia e Nova Deli, onde está situado, desde 2003, o Ravi Shankar Institute of Music and the Performing Arts. Ontem a Índia chorou porque morreu um dos seus símbolos. Mas é a música de todo o mundo que também está de luto.