Museu Machado de Castro reabre com um espaço à altura da colecção

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O núcleo renascentista incluia capela quinhentista dita "do tesoureiro"O novo restaurante tem uma fabulosa vista sobre a Sé fotos: adriano miranda

Remodelado e ampliado segundo um projecto do arquitecto Gonçalo Byrne, o museu de Coimbra mostra-se agora num esplendor que nunca tivera desde que abriu portas em 1913

Depois de três anos de obras de remodelação e ampliação, e de outros tantos para colocar todas as peças nos seus lugares, o Museu Nacional Machado de Castro (MNMC) reabre hoje às 17h30 (dia em que encerra, a título excepcional, à meia-noite), em Coimbra, finalmente dotado de um espaço que lhe permite exibir condignamente uma parte significativa da sua gigantesca e valiosa colecção. "O edifício não estava preparado para ser museu: não conseguíamos construir circuitos expositivos decentes e não podíamos mostrar algumas peças, ou porque não tínhamos pé-direito que chegasse, ou por razões de segurança", explica Ana Alcoforado, que assumiu a direcção do museu em Setembro de 2008, quando estavam ainda em curso as obras projectadas pelo arquitecto Gonçalo Byrne.

O projecto incluiu a construção de novos corpos, exteriormente separados uns dos outros, mas unidos por um túnel no interior. O tempo que esteve encerrado permitiu ainda o restauro minucioso de todas as peças expostas.

Ana Alcoforado não tem dúvidas de que esta obra, orçada em cerca de 15 milhões de euros, foi "a maior intervenção alguma vez feita num museu português". Os primeiros planos de remodelação já vinham do final dos anos 1980 e, em 2000, foi lançado um concurso internacional, que Gonçalo Byrne ganhou. Em 2004, o museu fechou e preparou-se a Igreja de S. João de Almedina para acolher todas as peças enquanto o edifício estivesse em obras. Estas iniciaram-se em 2006 e, em 2009, o museu reabriu ao público o criptopórtico romano - uma extensa rede de ruas subterrâneas que sustentava o desaparecido fórum da cidade romana de Aeminium -, que entretanto fora recuperado e musealizado. Era uma forma de ir mantendo os laços com a comunidade e de permitir às escolas visitar esta estrutura romana do século I, o maior e mais bem conservado criptopórtico da Península Ibérica, e um dos poucos em todo o mundo que tem dois pisos sobrepostos, construídos para vencer o declive da colina.

Investigações recentes levam a crer que o criptopórtico foi traçado pelo arquitecto romano Caius Servius Lupus, o mesmo que projectou o farol da Corunha, conhecido como Torre de Hércules. Uma inscrição no dito farol acrescenta o qualificativo "aeminius" ao nome do autor, o que poderia indicar que era natural de Aeminium (Coimbra), mas também que se tornara famoso pela obra que planeara naquela cidade.

Um dos aspectos que singularizam o MNMC é justamente o facto de estar assente num local que teve ocupação humana ininterrupta ao longo dos últimos dois mil anos, particularidade que passa para o programa museológico. Além do criptopórtico, os visitantes irão poder ver a reconstituição do antigo fórum romano, de que já não restam quaisquer vestígios. E a mesma preocupação de incorporar a história do edifício no circuito expositivo levou a que se criasse um núcleo subterrâneo onde se podem ver as escavações arqueológicas que revelaram, sob a actual Igreja de S. João de Almedina, vestígios de uma antiga igreja do século XI.

A ceia de Hodart

Daqui acede-se ao espaço reservado à escultura em pedra, que ocupa todo o piso zero e que é reconhecidamente o núcleo de referência do museu, que não por acaso foi baptizado em homenagem a um artista - Joaquim Machado de Castro (1731-1822) - que, além de ser natural de Coimbra, foi o maior escultor português do seu tempo. Começa-se pelas lápides trabalhadas de prelados e abadessas e, de repente, o visitante desemboca num dos mais conseguidos espaços do renovado museu: o núcleo de escultura renascentista, que inclui, como se fora uma peça mais, a capela quinhentista dita "do tesoureiro", para ali trazida, pedra a pedra, nos anos 1960. A solução de integrar a capela, que estivera sempre ao ar livre, no interior do museu foi o principal argumento, acredita Ana Alcoforado, para que Byrne ganhasse o concurso.

Apesar da relevância do conjunto de escultura barroca em madeira, é neste núcleo de escultura em pedra que podem apreciar-se alguns dos mais conhecidos tesouros do museu, do icónico cavaleiro medieval do século XIV, passando pela arca destinada a recolher as relíquias dos mártires franciscanos de Marrocos, ou pelos grandes retábulos em pedra quinhentista, alguns compostos por largas dezenas de peças. Entre os muitos artistas representados, destacam-se os conjuntos de peças de mestre Pero, o escultor da rainha Santa Isabel, e do francês João de Ruão, que se fixou ainda jovem em Coimbra e formou uma plêiade de discípulos, o que por vezes dificulta a correcta atribuição das obras.

Mas a menina dos olhos da directora é a sala seguinte, onde se mostram, numa cenografia ousada, o que resta das figuras em terracota que outrora compuseram uma última ceia criada pelo escultor Hodart (e não Filipe Oudart, como até aqui se supunha) para o refeitório do Mosteiro de Santa Cruz. Figura enigmátca, de quem não volta a ouvir-se falar após a execução desta obra (nem antes), terá pertencido ao grupo de artistas protegidos pelo bispo George d"Amboise, proprietário do castelo de Gaillon, por onde passaram Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci e Rafael. Considerando que a ceia de Hodart é o primeiro conjunto escultórico maneirista em Portugal, Ana Alcoforado sublinha que ela é contemporânea das obras de Miguel Ângelo, algo invulgar num país ao qual "estes movimentos artísticos costumam chegar com 50 anos de atraso".

Já os abades de Santa Cruz não terão apreciado a modernidade da obra, que foi sendo esquecida e acabou completamente destruída. Deve-se ao primeiro director do MNMC, António Augusto Gonçalves, ter percebido o seu valor e começado a procurar os seus fragmentos dispersos. "Havia cabeças de apóstolos em montras de chapeleiros", garante Ana Alcoforado. Ainda falta encontrar muitas partes, e colocar outras nos sítios certos, mas o que já foi possível reconstituir chega para não se duvidar do génio de Hodart.

Até à implantação da República, o edifício do museu era o Paço Episcopal, o que muito contribuiu para a riqueza desta colecção. Daí que o MNMC tenha peças emprestadas a museus de todo o país. A seguir à escultura, o seu núcleo mais importante é o da ourivesaria e joalharia, cujas peças mais icónicas são as jóias da Rainha Santa e, claro, a célebre Custódia do Sacramento, que esteve emprestada ao Museu Nacional de Arte Antiga e agora regressou a casa.

Mas há ainda pinturas de grande valor, como as obras de Adriaen Isenbrant e Quentin Metsys ou o tríptico quinhentista de Santa Clara, e uma grande diversidade de outras pequenas colecções: têxteis, cerâmica, mobiliário, marfins indo-europeus, entre muitos outros. E em cada núcleo, o visitante tem ao seu dispor quiosques multimédia com informação suplementar. No total, e a andar a bom ritmo, visitar todo o museu exigirá umas três horas. Mas pode-se sempre fazer uma pausa e almoçar no novo restaurante, com a sua fabulosa vista sobre a Sé Velha.

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