Uma história de bondade ou um logro: existe uma outra dimensão?

Será que a bondade do polícia fica reduzida a ingenuidade se considerarmos que este foi enganado – o "sem-abrigo" afinal tinha abrigo? Eu creio que não

Li o artigo e vi a foto. Compreende-se a comoção gerada por esta, um benevolente gesto é merecedor de comoção. Um agente da lei a calçar um desprotegido, um «sem-abrigo». Dois mundos diferentes unem-se porque um polícia põe-se de joelhos para oferecer uma protecção do chão frio e agreste a um homem de «aparência desleixada». Geralmente, estes dois mundos não transpiram bondade um para o outro. Os «sem-abrigo» vivem na margem; os polícias são o epicentro da ordem e da lei dos que não vivem na margem - aqueles que têm propriedades, vidas e luxos que devem ser protegidos do crime, da violência e do vandalismo. Agora descobre-se que o homem dos pés nus afinal não era um genuíno «sem-abrigo»; ele tem uma casa, ele recebe uma compensação caritativa de um Departamento Oficial qualquer.

As coisas quando acontecem merecem ser vistas de outros prismas que os olhos não conseguem ver. Digamos que este episódio faz florescer a dúvida plural como se este relato pudesse esconder muitas verdades omissas. Se temos conhecimento que Jeffrey Hillman é alguém com um abrigo, será que a bondade de DePrimo continua a ser genuína bondade? Será que podemos alegar que DePrimo foi conduzido a um gesto de bonomia por um logro?

Vou reformular melhor a pergunta: será que a bondade do polícia fica reduzida a ingenuidade se considerarmos que este foi enganado – o «sem-abrigo» afinal tinha abrigo? Eu creio que não, mas vejamos o que eu já ouvi dizer sobre a solidariedade: «Eu não dou nada a essas instituições de caridade porque há pessoas que aproveitam-se da minha bondade e ficam com as coisas que eu ofereço.» Sublinhem as palavras: «eu» e a «minha bondade», e, depois disto, juntem as mesmas ao conceito de solidariedade. Há palavras que não podem vir juntas na mesma frase. Não concordam?

Há um segundo ponto é possível se continuarmos a ver o episódio com minúcia. Jeffrey Hillman tem uma casa - um abrigo -, há um Departamento Qualquer que lhe proporciona um tecto. Mas será que isto quer dizer que este homem possui um lar? No conceito de lar como espaço nosso dentro de uma comunidade. Nós regressamos aos nossos lares sem sairmos da nossa comunidade, pois os nossos lares fazem parte dum mesmo espaço partilhado. Os nossos lares são protegidos, cuidados e acolhedores, graças, também, à comunidade onde estamos integrados. Deste modo, os nossos lares não são somente um mero espaço físico, não são só quatro paredes. Vivem lá os nossos. Convivemos lá com os próximos. Há momentos felizes na intimidade dos nossos lares. Estes oferecem paz, descanso e sossego. Apresentam-se como um ponto de retorno ou refúgio do bulício e quotidiano apressado - podemos pensar devagar nos nossos lares.

Agora imaginemos que este homem - Jeffrey Hillman - tem uma casa mas não tem um lar. Vive numa comunidade que ignora-o, e não há nenhuma casa que o proteja disto? Uma casa que não oferece paz, descanso e sossego, pode ser considerada um lar?

Todos os Departamentos Oficiais podem oferecer casas «permanentes», subvenções e prestações sociais, mas podem ser completamente incapazes de facultarem lares que ofereçam o sentimento de pertença numa comunidade. Será que basta inventar departamentos para criarmos uma verdadeira e genuína comunidade? Há diversas dimensões que só uma comunidade viva pode oferecer, e isto não envolve somente «Departamentos Oficiais» que garantem estas prestações sociais.

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