Quantos anos tem? Quantos brinquedos faz? Onde está a mãe Natal?
Rovaniemi, a capital da Lapónia, enrola-se-lhes na língua, mas sabem que é de lá que podem trazer a prova de que o Pai Natal existe. Só conheceram o destino quando já estavam no aeroporto e, dez horas depois, puderam experimentar deixar pegadas na neve e fazer vídeos para mandar beijinhos aos pais. Foi um sonho que se tornou possível para estas dez crianças escolhidas pelos hospitais onde são seguidas
São dez miúdos e estão numa excursão à Lapónia para tentar encontrar o Pai Natal. Parecem ainda mais pequenos nos fatos que têm de usar nas actividades na neve para proteger os pequenos corpos do frio e do gelo e de tudo ("Parecem fatos de astronauta!"). Têm um plano e três dias cheios. Cantam no autocarro que os leva às actividades: à aldeia do Pai Natal, à quinta dos huskies, ao parque das renas. Maravilham-se com a neve. Este é um grupo igual aos outros. Às vezes não é um grupo igual aos outros. As crianças que estão aqui foram escolhidas pelos hospitais onde são seguidas para cumprir um sonho: conhecer o Pai Natal.
As conversas são sobre o que poderá acontecer nesta viagem e sobre a figura mítica de vermelho e barbas brancas. "A minha prima diz que o Pai Natal não existe", começa a desconfiada Jamila, 9 anos, de Setúbal, inclinando a cabeça cheia de pequenas tranças que saem de carreiros fininhos. "Mas é isso que cá viemos fazer", diz Violeta Lapa, da Terra dos Sonhos, organização que promove a viagem. "Vamos ver se existe, e, se existir, levar a prova para Portugal."
A primeira coisa que causa fascínio nos miúdos nem é o Pai Natal. É o andar de avião. Para uma terra que anda a enrolar a língua na boca de todos: Rovaniemi. Chegados lá, é a neve.Não que seja muita, mas mesmo só um pouco de branco dá direito a muitos momentos de felicidade. No chão, deixar pegadas, medir a textura com as botas, ou escorregar no gelo; no ar, levantar a cara para sentir as gotas-flocos na língua ou no nariz. E concluiu-se que não é precisa assim tanta para grandes batalhas de bolas de neve, que provocam um autêntico delírio - e não é só nas crianças.
A primeira paragem do grupo é na aldeia do Pai Natal. Sair do autocarro, fazer um vídeo com a neve atrás a dizer "beijinhos à família", para ser publicado no Facebook (foi criado um grupo da viagem) e visto pelos pais, lá em casa.
Aqui está a linha que marca o Círculo Polar Árctico ("Mas não é um círculo!", indigna-se o Rodrigo, 9 anos, da Charneca da Caparica), e todos tiram fotos a passar para o lado de lá da linha. Há pinheiros, luzes de Natal, uma série de cabanas de madeira, os correios do Pai Natal onde se pode ir mandar uma carta - com a certeza de que ele enviará uma resposta para a morada lá deixada (por uns módicos 7 euros). Há lojas de lembranças em tons de branco de neve, vermelho de Pai Natal, cinzento dos animais do frio.
Numa cabana anuncia-se: "Santa is here." ("O Pai Natal está aqui.") Mas os miúdos estão tão distraídos com as brincadeiras na neve que nem olham para a cabana ou para o anúncio na placa. Lá há três pais natais, que trabalham por turnos, explica-nos Henrika, a guia finlandesa do grupo. "São tão parecidos que nem eu que cá venho muitas vezes os distingo." Mas estes não são, aparentemente, "o" Pai Natal. O que procuramos é outro.
"É aqui que mora o Pai Natal?" ou "Vai nevar amanhã?" ou ainda "O que vamos almoçar?" são as grandes perguntas.
Houve algumas desilusões ao longo da viagem, mas para cada uma houve sempre um plano alternativo. Por exemplo, a falta de neve, que acabou por levar ao cancelamento de alguns programas, como a viagem no trenó puxado pelos huskies. Mas nos outros dias houve motas de neve (algumas a derrapar no gelo com os consequentes embates em pequenas árvores seguidos de grande risota) e o passeio no trenó das renas. Depois dos passeios, as mãos de todos estavam geladas, as caras, deliciadas.
E o restaurante de gelo onde o grupo iria jantar derreteu, literalmente - houve dias com temperaturas positivas (um grau!) e o gelo precisa de temperaturas abaixo de zero para se manter. Mas, em contrapartida, o grupo foi "ao melhor restaurante da Lapónia", comer numa sala onde a luz era filtrada por uma série de peles de animais do Árctico.
Alguns miúdos queriam comer rena. "Deve ser uma carne gorda, suculenta, boa", dizia com ar sonhador Camilo, o mais velho, com 12 anos, de Évora, que depressa ganhou fama como o rapaz que comia tudo. Mas a maioria franzia o nariz perante a ideia de ter no prato as renas que eles próprios tinham acabado de alimentar com líquenes (sempre com muito cuidado para não se chegarem demasiado perto - é que, quando uma rena abana a cabeça, e elas abanam, as hastes ganham uma amplitude considerável).
Se algumas crianças gostaram de experimentar coisas diferentes na Lapónia, houve outros a quem as sopas-creme pesadas de natas e os condimentos do Norte não agradaram. E, sim, era inevitável: houve o dia do McDonalds.
"Eu disse logo que não queria ir para aChina, não gosto de comida chinesa", diz a Mariana, 9 anos, de Loures, explicando qual foi a primeira coisa que pensou quando lhe disseram que ia viajar (o destino era parte da surpresa: os miúdos sabiam que iam viajar, mas não sabiam para onde). "Eu pensei que ia para o México, mas não gosto nada de comida mexicana", conta a Jamila. O Rodrigo tinha imaginado que poderia ir à Lapónia, mas os pais disseram-lhe logo que a viagem não seria lá. Era um dos sítios onde ele queria mesmo ir. Será que isto é parecido com o que tinha imaginado? "É muito mais bonito."
Antes da partida, Ana Manoel, da Terra dos Sonhos, explica um pouco como a associação trabalha na realização de sonhos (de crianças doentes ou carenciadas e mais recentemente também de idosos): tudo é preparado para ser especial. Não é chegar à Lapónia e ver o Pai Natal: é todo um pacote de surpresas. É os miúdos não saberem para onde vão. Chegarem ao aeroporto e terem o boneco do canal Panda e a actriz Mariana Monteiro a dar-lhes a notícia. É ouvirem o comandante do voo falar com eles durante a viagem, através do sistema de som do avião, para lá - e para cá também. Todos os dias há uma, duas, surpresas, todos os dias são mesmo especiais.
A associação realiza sonhos individuais, que resultam de candidaturas de uma pessoa que não a própria criança - e cuja veracidade é depois "testada" por "espiões" da associação, que chegam à criança disfarçados (pode ser um professor, pode ser alguém a fazer um inquérito) para obter mais informações. "A mãe pode achar que o grande sonho da Joana é ir a Londres, mas nós depois descobrimos que é outro", conta Ana Manoel. O que se pretende, sublinha, "é desfocar da doença". E, na preparação da surpresa, isso acaba por ter também um efeito sobre os pais: o planeamento, o focar-se em algo diferente, leva muitas vezes a uma mudança de atitude e "gera uma série de emoções positivas".
A Terra dos Sonhos organiza, para além dos sonhos individuais, as experiências de sonho, para conjuntos de pessoas. A viagem à Lapónia, que é feita há cinco anos, sempre com o patrocínio da Janssen, é um exemplo.
Na Lapónia os dias são tão curtos como cheios. A claridade começa às 9h e acaba pouco depois das 14h, mas os miúdos nunca páram, e à noite ninguém está cansado.
Depois do jantar, de regresso aos três chalés onde estão distribuídos miúdos e graúdos, chega a hora de falar com os pais, por telefone, pelo Skype ou Facebook. Crianças acenam para o computador, o rosto aceso quando vêem a imagem dos pais no ecrã.
"Então, como estás? Estás a dormir bem? E a comer? Do que gostaste mais hoje?", as perguntas dos pais repetem-se. "Já encontraste o Pai Natal?" Um ou outro pergunta por coisas de saúde; os valores do açúcar, por exemplo. Um ou outro emociona-se. "Gosto muito de ti."
Há detalhes que vão surgindo como que por camadas nesta viagem. Há a lágrima de uma miúda que não quer comer e ouve um ralhete. Há um que não prova sequer a comida, olha e garante que não gosta, o que só se resolve começando a pedir massa com salsichas (e isso ele come). Podem ser sinais do background da vida destas crianças. Elas estão aqui porque têm, ou tiveram, alguma doença. Muitas passaram por tratamentos dolorosos, períodos de internamento longos, temporadas no isolamento.
Os miúdos que se nota que têm doenças são os diabéticos: há glicemia a medir, insulina a picar, horas certas para comer, lancheiras com comida SOS. Tudo é feito com a maior normalidade: as medições, a pica com as canetas. Dos outros há quem tenha visto uma cicatriz no peito (marca de cirurgia cardíaca), ou a ficha clínica: "Doença oncológica. Suspensão do tratamento há dois anos." Ou: "Hipotiroidismo."
Hoje, aqui, ninguém diria. Quer dizer, ninguém, excepto os enfermeiros. Nesta viagem Liliana Branco, enfermeira do serviço de cirurgia do IPO de Lisboa, e Mário Duque, enfermeiro-chefe do serviço de cardiologia pediátrica do Hospital de Santa Marta, também em Lisboa, vieram assegurar que tudo corre bem e estão prontos a intervir, caso não corra. Têm uma mala com tudo e mais alguma coisa: de kits de reanimação a compressas esterilizadas para possíveis feridas de quedas. A viagem não foi um descanso para eles, que estiveram sempre com o olho clínico nos miúdos. "Quando trabalhas com eles todos os dias, sabes que pode acontecer tudo a qualquer altura", justificam. Mas nunca foi preciso abrir a mala.
Na verdade, só quem acompanha os miúdos tem a informação completa sobre o quadro clínico. E, entre si, as crianças não parecem falar muito disso. Uma pergunta sobre as injecções de insulina, ou a confirmação de que se tem a mesma coisa. Uma vez, uma conversa entreouvida entre três meninas: "A nossa doença é toda a mesma, não é? Temos todas cancro." É uma quebra na galhofa, mas é só uma quebra, quase um apontamento.
O que começa a surgir à medida que a viagem avança e o grupo se conhece melhor são vários minidramas. "Ele disse-me que gostava de mim e eu disse que já tenho namorado e ele agora está chateado...", queixa-se uma das miúdas, fechada na casa de banho, de onde não quer sair com vergonha. Lá se lança uma operação de diplomacia. Passado pouco tempo já ela anda aos pulos com o resto do grupo: "Ele já não está chateado comigo, já só está chateado com a Jamila, iupiii!"
Mário Duque diz que em muitas destas crianças se nota algo contra o que ele luta todos os dias: a superprotecção dos pais. Ressalva que não julga ninguém: quem pode julgar pais que passem pela doença dos filhos? Mas nota que é importante que tenham uma vida o mais normal possível: "Os miúdos precisam de ser tratados como crianças normais nas suas vontades, necessidades, brincadeiras. Precisam dessa normalidade, e isso implica os ralhetes. Crescem muito com a doença, mas muitos pais infantilizam-nos."
Às vezes parecem adultos em tamanho mini - "Tornam-se peritos na sua própria doença", explica a enfermeira Liliana Branco. "Sabem muito sobre catéteres e pensos e agem com a responsabilidade de quem tem uma doença oncológica", nota. "Mas há um fosso entre o que sabem sobre a sua doença e o que sabem do mundo."
As crianças não se queixam. "Quando dói, dói; quando não dói, são miúdos normais", continua Liliana. Só uma vez o sofrimento entra na conversa das crianças e é por causa de um mal-entendido. Quando a Mariana, menina de riso sempre pronto e que não larga um mocho de peluche que comprou, entre o amor à primeira vista e o espírito pragmático ("É muito fofinho e só custava cinco euros e meio"), diz que, quando for grande, quer ser... qualquer coisa que parece "doente". "Não! Duende!", corrige ela, e não se está a rir com a confusão. "Já passei por muita coisa." Mas isto dura um segundo, e logo as meninas recomeçam a falar, aos atropelos, sobre o que querem ser quando forem grandes: "Médica! Veterinária! Cantora! Treinadora de golfinhos! Professora de ginástica! Estilista!"
"Se vamos encontrar o Pai Natal?" O Rodrigo repete a pergunta que lhe fizeram, entrando em modo "futebolístico": "Eu acho que sim. Somos uma equipa forte, somos capazes."
No regresso, missão cumprida, há um grupo de meninos felizes mas cansados, e as saudades de casa estão a apertar. Ao entrarem no avião da TAP para Lisboa, nem querem acreditar quando a tripulação os cumprimenta com um "boa noite". "Eles falam português!", diz num grito entusiasmado de quem passou dias a ouvir línguas estranhas a Inês, 9 anos, do Barreiro. "Já estamos quase a voltar a casa."
Em que idade se deixa de acreditar no Pai Natal? Algumas destas crianças acreditam, outras parecem mais cépticas. "Vou levar uma foto para mostrar que o Pai Natal existe", diz a Mariana. "Já me disseram que ele não existe e quem compra as prendas são os nossos pais", protesta a Jamila. "És totó! Achas que os nossos pais iam fazer isso a meio da noite?"
A Jamila tinha prometido que ia verificar se o Pai Natal era mesmo verdadeiro puxando-lhe a barba. Mas quando o Pai Natal chega ao sítio do jantar, parece convencer: as bocas estão abertas e o silêncio é total.
É o último dia e a antecipação veio em crescendo. Henrika, a guia finlandesa, chega e diz a todos que parece que viu um trenó com renas pelos céus e que caíram alguns embrulhos... "Vamos segui-los para tentar devolvê-los ao Pai Natal?" A resposta vem num coro misto em inglês e português: "SIIIIIIIMYESSSSS!"
Para a missão as crianças recebem lanternas e todos se põem a caminho na noite escura com a neve ainda mais branca por causa da lua cheia. Gritos de entusiasmo a cada embrulho. O trilho vai dar a uma cabana. Todos entram. E quando menos se espera... Chega o Pai Natal.
Depois do momento em que todos estão imóveis e boquiabertos, como num filme em pausa, as coisas recomeçam lentamente a mover-se. Os miúdos ajustam-se ao facto: o Pai Natal está ali e, chamados um a um, vão até ele. Uma prenda, um braço forte no ombro para a foto, e: "Queres pedir um desejo? Perguntar alguma coisa?" Os primeiros miúdos vão em silêncio, de medo ou reverência, tiram a foto e saem depressa do lado do velhote de estatura bem grande e barbas até à cintura.
A dada altura começam a descontrair-se e lá vem uma enxurrada de perguntas: "Como deixou crescer a barba? Onde está a mãe natal? Quantos brinquedos faz?" Ele tem resposta para tudo. "Nunca cortei a barba. Os presentes são os duendes que fazem. A mãe natal está a fazer doces."
"Quantos anos tem?", pergunta o Francisco. "Acho que é 427", grita o Rodrigo. "Tenho mais de 400 anos, quando penso em todos os natais que vivi, chego à volta do número 400, começo a ter sono e adormeço." As perguntas vão ficando mais soltas. "Quando é que nos convida para uma viagem no trenó no ar?", quer saber o Francisco. "Quando fores tão velho como eu."
Chega a parte da fotografia de família, todos com o Pai Natal. A Jamila, que tinha prometido puxar a barba, está quieta, mas a Inês tem um dedo enroscado num dos caracóis da barba longa. Será que vai puxar? Um grito, em coro, para a fotografia: "Ba-na-na!" Um flash, dois. A Inês desenrola o dedo. Debandam, e ninguém puxou a barba ao Pai Natal.
No final, a enfermeira Liliana vai entregar ao Pai Natal algumas cartas de meninos do IPO. "Só quero uma coisa: a minha cura", diz uma delas, duas mãozinhas do Simão, que a assinou, impressas no papel. A foto irá para Lisboa; o Simão saberá que a carta foi entregue.
a Os jornalistas viajaram a convite da Janssen