A Mouraria tem uma nova casa que foi concebida para ser de todos
A Mouradia abre hoje as portas com uma festa de inauguração que dura dois dias. Daqui por diante quer ser a casa de todos os que vivem na Mouraria. E uma porta de entrada no bairro para os que vêm de fora
No princípio havia apenas um projecto na gaveta de um atelier de arquitectura. E um edifício da câmara a apodrecer, acabado de herdar pela Renovar a Mouraria. Bastou uma conversa entre as arquitectas do atelier Artéria e os responsáveis da associação para perceberem que aquela era a oportunidade perfeita para dar forma ao Edifício-Manifesto. Para eles e para a Mouraria, que depois de décadas de má fama se ia levantando aos poucos para se transformar num dos bairros mais discutidos de Lisboa, agora por boas razões.
Desde então já se passaram quase dois anos. A obra está pronta - ontem arrumavam-se os últimos móveis, já só faltava um dia para a inauguração. O manifesto (que era a obra, para provar que a reabilitação urbana é possível e resulta até no edifício mais banal, como era aquele) está completo. E o resultado ficou lá para o vermos, naquele pequenino edifício azul encaixado num beco de escadinhas, junto à Praça da Figueira. Daqui por diante chama-se Mouradia - Casa Comunitária da Mouraria. O espaço é inaugurado hoje às 15h, com uma festa que só termina amanhã à noite. Mas já vamos à festa.
Mouradia foi um nome escolhido entre todos e vem de "Mouraria e moradia, um lugar para morar". A ideia, explica Filipa Bolotinha, uma das responsáveis da Renovar a Mouraria, é que se transforme mesmo numa casa para todos. Será "um local de convívio, cultura, formação e festa". Uma casa para quem vive no bairro, porta de entrada na Mouraria para quem vem de fora.
Pelo menos os vizinhos já olham para ela assim. Enquanto a conversa prosseguia, entrou no escritório um dos vizinhos com uma surpresa. Filipa abre o embrulho: duas placas com um 8 e um 10, os números de porta da Mouradia, no Beco do Rosendo. E parte da louça arrumada nos móveis da cafetaria também foi doada por um vizinho. "Queremos mesmo que pareça uma casa", explica Filipa e mostra o espaço, no rés-do-chão.
É esse espaço que vai estar aberto todos os dias, a partir das 17h, e que à noite terá refeições, com uma pessoa diferente a cozinhar em cada dia da semana. Todas as quintas, por exemplo, haverá um ou dois pratos de uma "refeição natural". Aos fins-de-semana abrirá mais cedo, às 10h30 e só fechará às 2h. Haverá concertos, actuações de DJ, tertúlias, noites de cinema. Já reuniram um conjunto de cassetes para as noites de VHS, por exemplo. Hoje actuam Os Telefonia e Os Compotas, amanhã há fado.
Para respeitar o princípio de que a Mouradia é mesmo uma casa, a cafetaria - que quase podia ser a cozinha da casa de alguém - também está disponível para quem quiser fazer um jantar com amigos. O primeiro será o jantar de Natal de Filipa, já no dia 15. Também o primeiro andar, onde a partir da próxima semana decorrem actividades (de cursos e workshops a iniciativas de apoio aos cidadãos, passando pela medicina alternativa, estará disponível para propostas dos moradores. "As pessoas do bairro merecem um espaço qualificado", diz Lucinda Correia, a arquitecta do Artéria. "Isto não deve ser um capricho de um grupo de pessoas com dinheiro, é uma necessidade genérica."
Já nas próximas semanas começam os cursos de alfabetização e de Português para estrangeiros (para servir a população imigrante, que tem um peso significativo no bairro). E um curso de Chinês para portugueses, com um professor chinês que vive na Mouraria.
Para os mais novos haverá, a partir de Janeiro, actividades de ocupação de tempos livres e apoio ao estudo. E aulas de ballet e de guitarra. E uma oficina de Natal e um workshop de ilustração para crianças, pais e avós. Mais um workshop de culinária, que também já está previsto (a programação é divulgada no site da associação - http://www.renovaramouraria.pt/). A Mouradia - Casa Comunitária da Mouraria, prometem os anfitriões, será um "ponto de encontro entre a cultura bairrista e as inúmeras expressões culturais do bairro".
E afinal aquele edifício esquisito e com mau aspecto escondido no Beco do Rosendo não era um edifício qualquer. Quando começaram as obras - naquela altura em que a outra arquitecta do Artéria, Ana Jara, olhava para a Mouraria e ainda só via um bairro "cheio de nãos" -, sabia-se que tinha sido armazém de colchões na década de 1920, ultimamente atelier de uma artista plástica. Os novos inquilinos descobriram agora que tem muito mais história: em 1860 foi sede da Associação Patriótica, também conhecida como "Clube do Borratém" ou "Beco do Rosendo", uma das primeiras associações políticas populares criadas em Portugal.