Mo Yan é um escritor num dilema "dificílimo", um "fantoche do regime", um "anão"
Desde a chegada a Estocolmo que o novo Nobel da Literatura provoca polémica. Primeiro, a comparação da censura ao controlo de segurança dos aeroportos e a recusa em assinar uma petição pela libertação do Nobel da Paz de 2010, o seu conterrâneo Liu Xiaobo. Ontem, o discurso em que o "contador de histórias", na verdade, não falou.
Entre as histórias que contou ontem no discurso de aceitação do Nobel, com a mãe analfabeta, a quem dedicou o prémio, como foco central, Mo Yan, que se definiu como “independente” na conferência de imprensa que deu na chegada a Estocolmo, justificando assim o facto de não assinar uma petição pela libertação do Nobel da Paz de 2010, o romancista Liu Xiaobo, preso há três anos, Mo Yan defendeu que o homem que vem sendo acusado de pactuar com um regime dito autoritário e castrador das liberdades civis “não tem nada a ver” consigo. Um escritor, afirma, escreve. E tudo o que Mo Yan tem para dizer está nos seus livros. “Emoções acaloradas e raiva fazem com que a política suprima a literatura e transforma o romance em reportagem de um acontecimento social”. O discurso, naturalmente, não foi literatura. E, para os dissidentes chineses, a leitura política foi óbvia. “Nos últimos dias, ele defendeu o sistema de censura... depois no seu discurso fala sobre contar histórias – usando uma expressão chinesa, é como uma prostituta que insiste na pureza do seu trabalho”, afirmou o supracitado Ye Du. “Em termos literários tem algum mérito, mas como ser humano é um anão”, concluiu.
Ai Weiwei, o artista plástico que o regime chinês impede de sair do país, depois de um tortuoso processo judicial iniciado, após uma primeira detenção sem acusação, por obscenidade e fraude fiscal, também comentou a discurso. “A conversa de Mo Yan sobre contar histórias foi acerca de encobrir coisas e esconder-se. Foi impotente, vergonhosa, uma traição, é um vendido.”
Mo Yan, escritor famoso pelos seus romances embuídos de realismo fantástico e encenados na história recente da China e na tradição dos seus contos seculares, receberá o Nobel da Literatura na segunda-feira e tem sido muito elogiado pelos governantes e pela imprensa estatal chinesa, que considera que a distinção, pelo prestígio do Nobel, coloca a literatura e a cultura do país no centro do mundo. Há dois anos, quando foi atribuído o Nobel da Paz a Liu Xiaobo, preso desde 2009 por contestar a corrupção e repressão do regime, os dirigentes chineses consideraram a atribuição do prémio uma traição e uma profanação do seu espírito.
As declarações de Mo Yan desde a sua chegada à Suécia têm provocado reacções intensas. A defesa da censura como tão inevitável quanto o controlo de segurança num aeroporto, tendo sempre em atenção que deve ser “guiada pelos princípios mais elevados” – “a censura não deve intrometer-se no caminho da verdade, mas difamação e rumores devem ser censurados”, afirmou –, aliada à recusa em juntar o seu nome aos de Desmond Tutu e restantes signatários (cerca de 130) da petição pela libertação de Liu Xiaobo, isto depois de, ainda em solo chinês, ter manifestado o desejo de que o romancista “encontre a liberdade o mais rapidamente possível”, levaram Salman Rushdie a estabelecer um paralelismo. Cita-o o Salon: “É difícil evitar a conclusão de que Mo Yan é o equivalente chinês a Mikhail Sholokhov, o escritor apparatchik da Rússia soviética: um fantoche do regime”.
Evan Osnos, correspondente da New Yorker em Pequim, aponta que Mo Yan se encontra numa posição dificílima. “O Governo chinês pode, de uma penada, escolher tornar a sua vida miserável, e seria o resto do mundo a decidir como a história o recordará”. Acrescenta: “Ninguém que não tenha suportado o peso de escrever sob autoritarismo pode ignorar com indiferença o seu dilema”. Osnos afirma que, ainda assim, o timing das declarações de Mo Yan não poderia ser pior. Enquanto em Estocolmo, jornalistas da Associated Press conseguiram iludir os guardas que mantêm em prisão domiciliária, sem acusação formada, a mulher de Liu Xiaobo. “Vivemos num lugar tão absurdo”, afirmou. “Senti que estava preparado emocionalmente para lidar com as consequências de lhe ser atribuído o prémio. Mas depois de o ganhar, nunca imaginei que não me seria possível sair de casa. Isto é demasiado absurdo. Julgo que Kafka não poderia ter escrito algo mais absurdo e inacreditável”.