O que torna "austríacos" os filmes de Michael Haneke?
Não faz segredo de que considera a sociedade austríaca "insensível" e "emocionalmente gelada". No entanto, não está "zangado" com ela, como afirmam frequentemente os críticos estrangeiros. Por Alexandra Zawia
Que Haneke tem em casa o sofá em que uma família foi torturada em Brincadeiras Perigosas, não é um boato. Está em bom estado e, finalmente, pertence-lhe. Na altura, o sofá foi feito para o filme, seguindo instruções do aderecista Hans Wagner: "Devia parecer-se com um sofá americano, mas também com um sofá austríaco", conta Wagner. Tal como a casa em que se passava o thriller, uma casa "que podia pertencer a um subúrbio austríaco ou americano". Porque, na rodagem de 1996, Haneke também concebeu o filme para o público americano.
Nos EUA, Brincadeiras Perigosas não teve sucesso, nem no remake que Haneke fez em 2007. Não terá sido por causa do sofá ou da casa, mas de um paradoxo: "Se o filme fosse um êxito, o público não teria entendido a mensagem", disse Haneke ao produtor Veit Heiduschka. O filme foi concebido como uma crítica moral da representação mediática da violência e dos seus efeitos na sociedade, e quem o visse como entretenimento seria exposto. Curiosamente, o filme teve mais êxito na Áustria do que em qualquer outro país.
Não é fácil entender o que há de "austríaco" nos filmes de Haneke sem cair em estereótipos. No entanto, as suas obras, tais como as de Ulrich Seidl, por exemplo, são caracterizadas como "típico miserabilismo austríaco". Haneke não faz segredo de que considera a sociedade austríaca "insensível" e "emocionalmente gelada". No entanto, não está "zangado" com ela, como afirmam frequentemente críticos estrangeiros.
Nascido na classe média alta em Wiener Neustadt, perto de Viena, sente-se austríaco e, naturalmente, sabe como são os "sofás austríacos" nas vivendas com cave dos subúrbios: não raro, estão cobertos com um plástico. Sim, para não se estragarem. Nos seus filmes, procura penetrar não tanto nas fossas abissais da alma austríaca - como Seidl -, mas sondar as profundezas universais da condição humana. Porque o faz numa linguagem depurada, as mais das vezes com enquadramentos fixos, ressalta dos seus trabalhos a precisão que lhe é tão característica.
"Não é raro um grande plano ser filmado umas 37 vezes", sabe o operador de câmara Christoph Berger. "Para Haneke, a preparação é o mais importante. Com a máquina fotográfica planeia tudo até ao detalhe. Logo que a rodagem começa, não há espaço para improvisações nem desculpas." Claro que este método pode dar origem a episódios bizarros. Numa cena de O Sétimo Continente em que eram rasgadas notas e atiradas para a sanita, a produção preparou notas falsas, recorda o assistente Hanus Polak, Jr. "Haneke filmou a cena, mas não ficou satisfeito. "Isto não parece rasgar notas a sério", disse. Portanto, tivemos de ir ao banco levantar dinheiro. Os pobres estagiários pescaram depois as notas da sanita, colaram-nas e penduraram-nas a secar."
Os seus medos
Os filmes de Haneke, na sua maior parte co-produções com outros países, sobretudo a França, são também filmes austríacos? Haneke responde que sim, apesar de preferir falar em francês nos festivais. Assim, acha ele, não se nota tanto o seu marcado dialecto de Wiener Neustadt - que, na Áustria, é associado às classes trabalhadoras e contrasta com os seus antecedentes burgueses e intelectuais.Há muito que Haneke não dá entrevistas à rádio na Áustria, mas não só por esta razão: não consegue suportar não ter controlo sobre o que é emitido ou impresso. Não colhe na Áustria um reconhecimento incondicional. Os austríacos são gente pouco dada a empolgamentos, e bem mais ao pessimismo. O cepticismo e o sofrimento por antecipação correspondem mais à mentalidade austríaca que a confiança e a alegria sem reservas. O escritor Thomas Bernhard (1931-1981) abordou estas características nos seus livros: para ele, os austríacos eram "criaturas da agonia". Para Haneke, embora isto não seja exclusivo dos seus compatriotas, a arte dramática vive apenas do conflito - seja com o seu país, seja com as pessoas em geral.
Muito mais que Seidl, Haneke mantém as personagens à distância. Mas tanto um como outro trabalham contra a repressão. Em cada filme, atacam-na da forma o mais radical possível e em várias frentes, e confrontam o espectador com os seus pontos fracos - e tanto a repressão como o seu combate têm na Áustria uma tradição histórica, o que foi tematizado por Haneke de forma clara em O Laço Branco. Haneke aborda agora em Amor os seus próprios medos. Sim, pediu à mulher, Susanne, que o ajudasse a morrer caso venha a ficar num estado de dependência extrema, admite. "Mas ela não quer. Falámos sobre o assunto, pois lido mal com a perspectiva de um dia já não conseguir decidir só por mim o que quero fazer. Numa tal situação, seria bom ter alguém que se compadecesse de mim. Mas não posso mandar ninguém fazer isso." Ele próprio teve de passar por essa experiência, quando a sua tia se suicidou aos 93 anos: "Foi o ponto de partida para a questão que me coloco em Amour: como lidar com o sofrimento de alguém que amo? Como posso evitar que se torne uma vítima? A minha tia tentou matar-se mas salvei-a, porque cheguei lá no momento certo e descobri o copo com os soporíferos. Três dias depois, ela acordou no hospital, abriu os olhos, viu-me e perguntou: "Meu Deus, porque é que me fizeste isto?"" Depois esperou que Haneke estivesse fora, num festival, e consumou o acto. "Ela não queria tornar-se uma vítima", diz o realizador. "Respeito-a por isso, como homem e também como austríaco."