Momentos e evocações

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Uma figura cimeira da música contemporânea em Portugal: Constança Capdeville

Constança Capdeville nunca foi em sentido estrito uma prossecutora de John Cage, mas nela também foi da maior importância a abertura à aleatoriedade. Sobretudo tinham um e a outra um imperativo de liberdade, e também algumas afinidades

Vivemos numa cultura de efemérides, mormente no campo das artes, com tudo o que isso pode ter de redutor. Mas as efemérides podem também ser ocasiões privilegiadas para nos fazerem de novo presentes obras de autores que estão longe de se incluírem nos cânones correntes. Foi agora o caso de John Cage e de Constança Capdeville.

De John Cage, figura sem dúvida das máximas da música contemporânea, e aliás das artes em geral - dada a sua enorme influência, designadamente na dança, com a sua relação determinante com Merce Cunningham, ou nas artes visuais, mormente com Robert Rauschenberg, nas práticas do happening e da performance, etc. -, assinalaram-se em 2012 o centenário do nascimento e os 20 anos da morte. De Constança Capdeville, figura cimeira da música contemporânea em Portugal e infatigável animadora, assinalaram-se os 75 anos do nascimento e os 20 da morte.

A coincidência das efemérides é o motivo da evocação conjunta. Mas estas coincidências fazem-nos também por vezes tornar mais evidentes aproximações.

Se é possível sumariar o contributo fulcral de Cage, há três aspectos a salientar: a invenção do piano preparado, pela qual, por via de colocação de objectos nas cordas do instrumento, procedeu à libertação dos sons da estrita escala temperada; a reavaliação crucial do silêncio, de que é emblemática a celebérrima peça 4"33"", em que nenhum som é emitido, fazendo(-nos) ouvir as sonoridades interiores do nosso próprio corpo; a abertura à indeterminação e ao acaso, com a referência fundamental aos princípios orientais do I Ching.

Constança Capdeville nunca foi em sentido estrito uma prossecutora de John Cage, mas nela também foi da maior importância a abertura à aleatoriedade. Sobretudo tinham um e a outra um imperativo de liberdade, e também algumas afinidades: um vector fulcral no sentido de práticas composicionais teatrais, coreográficas ou genericamente performativas, o recurso a motivos e objectos pré-existentes e ready-mades (e foi por via de Cage que a influência de Marcel Duchamp, com todas as suas enormes consequências na mutação dos princípios da arte, se tornou determinante na segunda metade do século XX); e a referência maior a Erik Satie, Constança tendo mesmo concebido um espectáculo, Vamos Satiear, que é um enunciado liminar.

A celebração de Cage em Portugal ficou a dever-se à Casa da Música com um espectáculo de Rui Horta, Danza Preparata, e um concerto-espectáculo concebido por Paul Hillier, maestro-director do Coro da Casa da Música, the SONG-CAGE.

Rui Horta havia já realizado para a Casa da Música um trabalho notável, assinando a direcção cénica, o desenho de luz e multimédia de 4"33"", espectáculo de tributo a John Cage, com obras de diversos compositores, todas com a duração da famosa peça silenciosa. Danza Preparata, sobre as Sonatas e Interlúdios para Piano Preparado de Cage, foi a lógica prossecução desse trabalho. Esta é, a meu ver, a melhor obra de Horta desde Pixel (2001), e, ainda que não tão claustrofóbica, não deixa de compartilhar uma muita rigorosa e delimitada noção do espaço, construído com base em dois losangos brancos, um como estrado, outro suspenso em fundo, mas também sendo moldado por um minucioso trabalho de luzes.

Como seria de esperar, a coreografia é um exaustivo trabalho de motricidade, embora Horta escape ao óbvio, uma dança baseada no tipo de trabalho físico de Cunningham. Mas o movimento é enérgico e rigoroso, com pormenores muito interessantes à definição do movimento e do trabalho corporal, como o recurso a paus de mikado e aos acasos derivados do modo como caem espalhando-se pelo chão, em evidente referência aos princípios da indeterminação e do I Ching em Cage, ou o uso das fitas adesivas que nos espectáculos servem para assinalar as marcações, e que aqui são usadas perante o público, com a própria bailarina, a admirável Silvia Bertoncelli, colando-as no seu corpo e assim ficando constrangida. Não menos importante é a concreta presença em cena do próprio piano - e a interpretação da obra de Cage por Rolf Hindt é maravilhosa.

(Deve dizer-se, que estas coisas são importantes, que Danza Preparata é neste momento o espectáculo de produção portuguesa com maior difusão internacional. Depois da estreia na Casa da Música a 11 de Abril, o espectáculo foi logo de seguida apresentado em Guimarães e em Lisboa, na Gulbenkian. A digressão internacional já incluiu Hanover, Estraburgo, Roma, Dresden, Londres e Vilnius e prosseguirá no próximo ano, com datas já marcadas em Salzburgo, Birmingham e Milão).

Entretanto, no passado dia 18, houve outro espectáculo na Casa da Música, the Song-Cage, concebido por Paul Hillier, o qual, impedido por motivos de saúde de dirigir, foi substituído por Chris Watson (sobretudo este) e Jakob Bloch. Hillier é um especialista de música renascentista e maneirista, por um lado, e contemporânea, por outro lado, dado que é um aspecto fulcral do espectáculo, dada a recorrência, na obra de Cage, de elementos da tradição coral e antiga. Por exemplo, a peça conclusiva, ear for EAR (ouvido para EAR, uma revista de música contemporânea) é de facto um responsório, com uma única voz solista em palco, o coro respondendo dos bastidores. Outros dois aspectos são de salientar: o cénico, com o jogo em torno de quatro mesas, uma delas com um tabuleiro de xadrez, evocando as partidas entre Cage e Duchamp, e marcantes referências literárias nos textos das obras, como as de Getrude Stein e Thoreau, o autor desse texto de tão aguda actualidade que é A Desobediência Civil.

É com uma especial emoção que recordo Constança Capdeville, à qual me ligavam profundos laços de admiração, amizade e cumplicidade. A 23 de Setembro passado, no Festival Música Viva, foi apresentado um espectáculo de homenagem a Constança, Ce Désert Est Faux (a que infelizmente não pude assistir), concebido pelo compositor António de Sousa Dias, particular discípulo de Capdeville, e um daqueles com quem ela desenvolveu laços próximos e de trabalho conjunto, como, entre outros, o tenor Luís Madureira, os pianistas Olga Prats, Nuno Vieira de Almeida e João Paulo Santos ou o bailarino João Natividade.

Várias das peças então apresentadas, incluindo algumas das mais marcantes da autora, como Momento I e Amén para uma Ausência, voltaram entretanto a ser apresentadas, no passado dia 16, num concerto do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa no São Luiz, incluindo também a estreia de uma peça encomendada pelo Grupo a Sousa Dias, Keep Smiling, que retoma uma cadência, ré maior-sol menor, de uma das peças cénicas de Constança, e em que inclusive Sousa Dias participava em palco, Don"t Juan; e ainda, facto incrível, a primeira audição de uma obra de Constança que estava "esquecida", Tibidabo 69 - Museu de autómatos.

A música de Constança Capdeville é uma estética do instante, em que o tempo não é estritamente seguido na continuidade de uma linha horizontal, mas em que há uma libertação das potenciais verticais de cada momento, numa exploração máxima do material de qualquer sonoridade, e numa solicitação da gestualidade e do jogo cénico. Isso é patente em Tibidado 69, em que os autómatos vistos num museu de Barcelona são de algum modo o ready-made gerador da obra.

Passada a dupla efeméride, dos seus 75 anos de nascimentos e 20 da morte, esperemos que não tenhamos de ter outro hiato na presença real da música de Constança Capdeville.

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