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Os portugueses dos bidonvilles que Gérard Bloncourt fotografou são gente que a nossa historiografia tem geralmente esquecido

História

Por uma vida melhor

O fenómeno migratório constituiu um poderoso elemento de deslegitimação do Estado Novo. António Araújo

La dictature de Salazar face à l"émigration. L"État portugais et ses migrants en France (1957-1974)

Victor Pereira

Les Presses de Science Po

5 estrelas

Entre 1960 e 1974, cerca de 1,43 milhões de pessoas terão deixado Portugal. Estima-se que mais de 40% o fizeram ilegalmente. É sintomático que a década de 60 seja a única em que, no século XX, se verifica um valor negativo (-3,1%) da taxa de variação da população residente. O economista Alfredo de Sousa contava, a este propósito, um episódio curioso: em 1970, a população de Portugal era menor do que em 1960; o almirante Thomaz, ao saber das estatísticas, disse que o censo estava errado e que tinha de se fazer um outro... Se "a maior riqueza de um país é a sua população", como dizia em 1965 o ministro Silva Cunha, Portugal estava a perder a sua "maior riqueza" a um ritmo vertiginoso.

A oposição ao regime denunciava o fenómeno como expressão do fracasso do Estado Novo. Mário Soares falava de "hemorragia humana" e de um "êxodo de proporções alarmantes". Na defensiva, Marcello Caetano dizia insistentemente que o movimento migratório não era um "fenómeno especificamente português".

A emigração tinha por objecto, não raramente, trabalhadores especializados (34% dos 120 mil portugueses que emigraram em 1973), o que constituiu uma perda da já de si escassa qualificação da mão-de-obra que permanecia em Portugal e obrigou à "importação" de imigrantes das colónias (v.g., Cabo Verde). Notando a fuga de trabalhadores qualificados, Marcel Niedergang escreveria, no Le Monde, que "a industrialização tardia e tímida não impede que Portugal assista à redução daquele que é, em qualquer parte do mundo, o capital mais precioso de um país: o homem". Fuga em busca de melhores condições de vida - "O Zé Povo foi p"ra França", dizia a canção de José Afonso -, a emigração tinha, para mais, um aval da sociedade envolvente, como certeiramente intuiu na época Hermínio Martins. E havia uma singular "urgência" em emigrar, a ponto de a emigração ilegal ter ultrapassado a legal; as estatísticas oficiais francesas diziam que 75% dos portugueses entrados em França entre 1961 e 1969 eram clandestinos. Nas palavras de Nuno Bragança, era a "imensa guerra de centenas de milhares contra a miséria imediata". E, numa obra de 1973, Ramos da Costa escrevia: "O povo pobre e desprotegido mostra a sua clarividência individual emigrando para fugir ao beco sem saída duma política feita da obsessão do interesse pessoal e do orgulho, alucinado pelo passado anacrónico dos seus dirigentes". Significativamente, a emigração é colocada, num livro que procedia ao balanço do quinto ano de governação de Caetano, como o primeiro problema da vida nacional.

Esse problema, porém, remontava a tempos anteriores. Já em Fevereiro de 1963 o nosso embaixador em Paris advertira Salazar: "O problema da emigração clandestina para aqui reveste uma gravidade política muito maior do que aí pode pensar-se"; mais tarde, em Maio do mesmo ano, diria que a legislação portuguesa em matéria de restrições à emigração era "letra morta", em face da qual se deveria endurecer e aplicar sanções penais eficazes ou, ao invés, liberalizar a saída dos emigrantes para França. Dividido entre permitir ou perseguir um fenómeno que assumia proporções gigantescas, o Estado Novo, pesem as medidas liberalizadoras de Caetano (v.g., a amnistia concedida em 1969 aos emigrantes clandestinos), nunca conseguiu lidar eficazmente com a emigração para a Europa, sobretudo quando se enveredou pelo caminho da ilegalidade. Para esta prevalência da emigração ilegal pode também ter contribuído a atitude das autoridades, incluindo a PIDE, de controlar um movimento que, segundo a polícia política, contava até com o apoio de alguns párocos locais. Adriano Moreira refere que "a emigração a salto não era tão clandestina como parecia, porque a negligência oficial variava de atenção conforme variavam as circunstâncias internas do mercado de trabalho". Por muito que as autoridades procurassem debelar o movimento, este adquirira proporções que não permitiam um controlo efectivo.

Ao chegar a Paris, depois de uma longa jornada de camioneta, na companhia de emigrantes, Nuno Rocha apercebe-se da realidade amarga dos portugueses em terras de França: "A cintura de Paris estava cheia de trabalhadores lusos, aplicados, dóceis, sem noção de sindicatos ou de outros direitos que não fosse trabalhar. E o patrão francês rejubilava com este homem do Sul da Europa, este homem bom e robusto, insensível à fadiga, cego pelo dinheiro, capaz de dormir no chão, este homem sem exigências, que trabalhava das 7 da manhã às 11 da noite". Dramas que Manoel Oliveira retrataria em O Acto da Primavera (1962), o que valeria ao cineasta uma passagem de dez dias pelos calabouços da PIDE do Porto.

Se "o patrão francês rejubilava", o mesmo se poderá afirmar quanto a outros empresários e dirigentes políticos. Em 1956, Konrad Adenauer, encontrando-se em Roma, oferece transporte gratuito a todos os italianos que o quisessem acompanhar para trabalharem na Alemanha; ao longo da década de 60, as autoridades alemãs estabelecem acordos de cooperação no domínio migratório com diversos países, incluindo Portugal (1964). O fluxo começou a ganhar tal dimensão que, nos anos 60 e, sobretudo, na década seguinte, alguns países começam a restringir a instalação de estrangeiros, como se verificou na Suíça.

Além de revelar as fragilidades do regime, a emigração teve, naturalmente, um impacto profundo na evolução das mentalidades e na "abertura ao mundo", como logo se aperceberam muitos intelectuais da altura. Numa crónica saída no Diário de Lisboa em Fevereiro de 1972, Saramago escrevia que em França os emigrantes encontravam "um mundo que nada tem de comum com o pequeno planeta provinciano e tradicional donde, na maior parte, saíram. Aprenderam que é possível viver doutra maneira". Da emigração e do turismo Soares dizia, nesse tempo, que eram dois factores "de suma importância de consciencialização popular", retomando, de algum modo, aquilo que Eça afirmara no século XIX quando se referiu à emigração como "força civilizadora".

No prefácio à segunda edição de Capitalismo e Emigração em Portugal, originalmente publicada em 1970 e logo apreendida pela Censura, Carlos Almeida e António Barreto escreviam que "a emigração acaba por submeter as comunidades mais tocadas pela expatriação a um súbito contacto com os valores do centro desenvolvido". Nas palavras de Adriano Moreira, "a nova emigração de jovens desertores da guerra colonial, que muito frequentemente se articulavam com os veteranos da diáspora, foi-se vinculando mais realisticamente a um projecto de futuro, aprendendo, no mundo europeu que os acolhia, a distância a que se encontrava o mundo de que se afastaram".

É também esta a conclusão final a que chega Victor Pereira neste excepcional livro. Legal ou clandestina, a emigração foi um dos factores decisivos - porventura, o principal - de "democratização" e de "europeização" de Portugal. Cerca de 900 mil portugueses foram para França entre 1957 e 1974. Até hoje, não existia uma monografia que tivesse estudado este fenómeno de forma sistemática e articulada. Luso-descendente radicado em França, onde é professor universitário (o livro é uma adaptação da sua tese de doutoramento), Victor Pereira procurou, acima de tudo, analisar a emigração como objecto de uma política pública, mais do que reconstruir o quotidiano dos portugueses em França ou revisitar os dramas - mas também os finais felizes, de Mercedes e maison - daqueles que davam "o salto". Entre a tentativa de restringir a emigração em massa e a realidade de uma hemorragia humana de milhares e milhares de pessoas, o regime demonstrava a sua fragilidade, evidenciando que um modelo autoritário e discricionário de acção política não tinha possibilidade de se afirmar num espaço em que as fronteiras contavam cada vez menos. Assim, além de abrir aos emigrantes novas perspectivas de olhar o mundo, o fenómeno migratório constituiu um poderoso elemento de deslegitimação do Estado Novo, com as consequências que todos conhecem. A revolução, primeiro, e a adesão à CEE, depois, tiveram nos emigrantes agentes fundamentais, ainda que talvez involuntários. Iam em busca de uma "vida melhor", para usar o nome da exposição das extraordinárias fotografias de Gérald Bloncourt. Mas, mais extraordinário do que as imagens de Bloncourt, será, porventura, o facto de, até hoje, apenas se ter conseguido identificar um dos retratados nos bidonvilles dos arredores de Paris (a "menina" Maria da Conceição Tina). Gente que se esfumou. E que, até hoje, não tinha merecido a devida atenção da nossa historiografia. A obra de Victor Pereira vem colmatar essa lacuna. Como tal, aconselha-se vivamente a que os editores portugueses a publiquem com urgência. Até porque, sendo uma obra de História, possui uma flagrante actualidade.

Ficção

A paranóia é um círculo

Compararam-no ao Ulisses, de Joyce - na complexidade, na ambição, na erudição -, mas Arco-Íris da Gravidade vive por si. Isabel Lucas

Arco-Íris da Gravidade

Thomas Pynchon

(Trad. Jorge Pereirinha Pires)

Bertrand

5 estrelas

Uma cantiga pode matar e se não mata maldiz. O amor vivo chora o que morreu. Fala-se de absoluto e uma mulher atira: "Eu sei que há quem se venha ao mesmo tempo." Dizem-lhe da inevitabilidade da solidão. Disso sabe ela. Mas nada do tal absoluto a dois. Talvez seja absoluta a ambição deste livro, arrogância autoral de quem quer dizer tudo. O que faz um flambé de banana num território atingido por rockets? Absurdo? Não. Thomas Pynchon (Long Island, 1937) na sua tremenda espiral narrativa, na terceira e mais ambiciosa das suas obras, que o levou à reclusão da qual ainda não saiu. Recluso em plena Manhattan. Parece que é possível continuar um enigma em Manhattan, mesmo quando o eremita se chama Thomas Pynchon e é colocado na estratosfera ao lado de nomes como Cormac McCarthy ou Philip Roth.

Foram precisos 39 anos. Gravity"s Rainbow, editado em 1973 com grande estrondo, ganhou, finalmente, título em português. Arco-Íris da Gravidade, traduzido com cuidado de ourives por Jorge Pereirinha Pires, é também uma reflexão sobre a Humanidade. Para o ler é preciso ultrapassar o medo de ser derrotado. Pela erudição, pelo detalhe, pela capacidade de convocar saberes e fantasia e de os juntar numa receita impiedosa.

"Uma berraria vem através do céu. Já aconteceu antes, mas nada há que a compare com agora." Primeiro parágrafo do calhamaço de 1021 páginas. Estamos na Europa do final da Segunda Guerra Mundial, no tempo que vai de 1944 a 1945, no local onde aterram rockets enviados de Londres. Chamam-se V2 e não são meros foguetes de guerra, mas a metáfora de um trajecto de destruição e paranóia, circular como a estrutura do livro, dividido em quatro partes, com o autor a recuar até à Primeira Guerra Mundial, a avançar até ao mundo de Nixon, a passar por todos os traumas e vícios de uma sociedade que desmonta invertendo não apenas os recursos estilísticos, mas os padrões sociais, recriando o discurso, falando de morte e de amor com ironia, pícaro, angústia, poesia. Para chegar à tal paranóia. É preciso perseguir o trajecto do V2, o arco que dá título a um livro que traz referências - da Geração Beat, do negrume de Faulkner, dos clássicos da literatura europeia, mas também da dele, Pynchon, o pós-modernismo, transportando dos anteriores romances (V e Leilão do Lote 49) personagens e uma música de fundo, tão dramática e obsessiva quanto o rendilhado narrativo.

Caiu um V2 e nos destroços há quem prepare um flambé de banana para o pequeno-almoço. Há um autismo de sobrevivência. A loucura da guerra, as drogas que a permitem suportar. E toda uma indústria que vive disso. É o colectivo do avesso, para dizer da impossibilidade humana de saber de si. Não haverá maior absurdo e então vai de explorá-lo até ao osso, até ao pós-guerra e às feridas, mas até lá... uma história do século XX.

Sai-se tonto desta leitura, um loop entre o riso, a angústia, o non-sense, e uma sensibilidade... Como se diz isto sem parecer cliché, tentando arranjar nome para esta capacidade de contar uma história (devia ter maiúscula) onde se fantasia uma realidade suportada por factos verídicos? Isto não é só ficção. Talvez metade ficção. É política, tratado de guerra, música, cinema, psicologia, física, matemática, filosofia, literatura de relações humanas a atingir uma comicidade de ir às lágrimas, ou não. É a maneira exímia de dizer o excesso com a ajuda de - há quem tenha contado - 400 personagens.

Ensaio

The End no grande ecrã

Uma história que não acaba bem: a do cinema como grande ilusão. João Lameira

The Big Screen: The Story of the Movies and What They Did to Us

David Thomson

Allen Lane

4 estrelas

Imagine-se um rapaz inglês de dez anos em 1951, na escuridão da sala de cinema, a única luz proveniente do grande ecrã. Que saberia ele do Japão? Que o povo era mau e cruel, um pouco menos desprezível do que o alemão, o principal inimigo na Segunda Guerra Mundial. Sabia-o pois via o garboso Errol Flynn no ecrã a matar os odiosos japoneses em Objectivo Burma. O rapaz foi crescendo e pelos olhos passaram-lhe as caricaturas de Marlon Brando em A Casa de Chá do Luar de Agosto e de Mickey Rooney em Boneca de Luxo, assim como o rígido comandante do campo de prisioneiros de A Ponte do Rio Kwai. O próprio admite que então os japoneses lhe pareciam todos iguais. Só aprenderia a ver em Hiroshima Meu Amor, de Alain Resnais. E daí partiria para Akira Kurosawa, Kenji Mizoguchi e Yasujirô Ozu, os dois últimos dos seus cineastas preferidos. Passado muito tempo, 61 anos, assina The Big Screen: The Story of the Movies and What They Did to Us, em que se dá conta de que as suas noções sobre um povo se formaram sobretudo (apenas?) no cinema.

O homem, que já não é rapaz nenhum, chama-se David Thomson: um reputado crítico de cinema que trocou a Inglaterra natal pela terra do cinema, a Califórnia, e prefere escrever livros a recensões às últimas estreias, pelo que, entre biografias, ensaios e o famoso A Biographical Dictionary of Film (em que perverte a sisudez e o rigor deste tipo de empreitadas com as malditas opiniões), conta com uma extensíssima bibliografia. Um conjunto de obras que encerra uma visão muito particular, muito pessoal (dir-se-ia autobiográfica) do cinema, em que a especulação - a partir de factos, factóides, mitos e boatos sobre actores, realizadores, técnicos, produtores et al (Thomson é bastante democrático, na medida em que lhes dá igual importância) - ocupa o mesmo lugar que a análise criativa aos filmes. Num ensaio compilado em Beneath Mulholland: Toughts on Hollywood and Its Ghosts, extrai da descontracção e do à-vontade da persona Cary Grant um perfil psicológico do actor. Mais, vendo o invisível, traça uma narrativa do homem, dos seus motivos e intenções, dos seus processos mentais, cuja correspondência à realidade pouco interessa, entregando-se a uma investigação da fantasia. É o próprio que defende que a atmosfera de um filme é bem mais importante do que aquilo que se pretende contar, ou seja, que a verdadeira história é aquela que o espectador intui. E de qualquer maneira a hipótese de que a grandeza de Grant advinha da consciência de que estava num filme e do facto de nunca o esconder do espectador (sem piscares de olhos ou esgares acentuados) é, quanto mais não seja, um belo repasto para o pensamento.

Neste The Big Screen, David Thomson, com alguns tiques do seu dicionário e de outro tipo de escrita (as pequenas biografias; os números de bilheteira e espectadores), ensaia uma história do cinema, ou melhor, uma história dos ecrãs - desde o zoopraxiscópio de Eadweard Muybridge até aos tablets e smartphones ligados à grande comunidade do Facebook -, ou então uma história sobre o fascínio que a luz exerce sobre ele próprio e sobre as massas (paira sempre a incerteza sobre se o us do subtítulo se refere à sua identificação com estas ou é tão-só um abuso do plural majestático). Ou mesmo uma história do olhar (as lágrimas de Anna Karina perante a imagem de Maria Falconetti), uma história do voyeur (o espectador, o sujeito que observa esse objecto obscuro do desejo que é o cinema; ou James Stewart em dois Hitchcocks, num a perscrutar a vizinha -a brincadeira de Janela Indiscreta -, noutro a perseguir uma mulher pela ruas de São Francisco - o pesadelo obsessivo de A Mulher Que Viveu Duas Vezes). Segundo Thomson, o prazer de ver filmes (e a seguir a televisão, e a seguir os computadores, e a seguir...) reside na oportunidade de olhar outras pessoas - bonitas, apetecíveis, identificáveis - sem poder (ter de?) tocá-las, mantendo, assim, um desejo nunca consumado (e, por isso, a pornografia desvirtua a magia do cinema). Como poderá ser a história das promessas (das fantasias) que as histórias fabricadas na máquina de Hollywood e noutros pontos do globo (França, Itália, Suécia, Japão) criaram nos milhares de pessoas que encheram as salas de cinema e as foram desertando.

Ao contrário dos clássicos da era dourada do cinema americano, esta história não tem um final feliz. Noutros livros de Thomson, notava-se-lhe por vezes um certo ressentimento com alguns realizadores. Rosebud: The Story of Orson Welles é um dos ataques mais cruéis e verrinosos ao autor de O Mundo a Seus Pés, uma desconstrução da ideia do génio, do jovem prodígio que Welles sempre cultivou (os mitos também se destroem e Thomson fá-lo com nítido deleite). Neste último livro, atira-se a Howard Hawks por este o ter iludido durante anos sobre as relações entre homens e mulheres. Em The Big Screen, para além do ressentimento em relação ao cinema em geral (por aquilo que poderia ter sido e não foi, pelo que foi e não deveria ter sido), revela uma angústia: a de que nada será como dantes. Não é por acaso que os últimos 30 anos desta história passam num ápice: não há muito a registar. Thomson declara a morte do olhar que se fixava nos grandes ecrãs e agora se desconcentra em jogos de computador (que estão para a violência como a pornografia para o sexo), nos telemóveis e até na imensidão de filmes disponíveis permanentemente em qualquer local a qualquer hora do dia em qualquer formato (uma preocupação semelhante à que Simon Reynolds, outro expatriado inglês nos Estados Unidos, expõe em Retromania: Pop Culture"s Addiction to Its Own Past). Declara, também, a morte do poder dos filmes para assustar, excitar, suscitar mais do que um interesse transitório no espectador (dá como exemplo a cena em que o bicho sai da barriga de John Hurt em Alien - o 8º Passageiro, que fez a mulher sair a correr da sala de cinema, enojada, e, anos mais tarde, o filho pequeno perguntar como é que aquilo tinha sido feito). Declara, portanto, a morte do cinema; o fim da história. Como o próprio escreve, The Big Screen é uma carta (às vezes pouco simpática) a um amor perdido.

Viagens

O peso da responsabilidade

Às vezes, é preciso entender que não escrever é melhor do que escrever. E isso deveria ter pensado José Luís Peixoto quando se deixou seduzir pela possibilidade de visitar a Coreia do Norte. António Rodrigues

Dentro do Segredo - Uma viagem na Coreia do Norte

José Luís Peixoto

Quetzal

1 estrela

Há um segredo muito mal guardado neste livro: José Luís Peixoto, o próprio, na primeira pessoa, fazendo toda uma viagem aparentemente reveladora, uma epifania, pelo país mais fechado do mundo. E há outro que nunca chega a revelar-se apesar do título afirmativo do livro: a Coreia do Norte. O país mais fechado do mundo continuará a ser o mais fechado do mundo e dele pouco sabemos mais do que já sabíamos depois deste livro. A não ser que pecado meu - tenha interpretado mal as intenções do narrador e o segredo que nos pretenda revelar seja próprio e não alheio: o de José Luís Peixoto na Coreia do Norte e não o próprio país, o regime, a fome, a tortura, a morte na ditadura mais maquiavélica da era moderna, com a sua capacidade não só de matar mas, pior ainda, de transformar um povo num conjunto autómato de gente que vive apartada do mundo e respira propaganda.

Reconheça-se, à partida, que a tarefa estava demasiado espartilhada para chegar a bom porto. Uma visita oficial guiada sem possibilidade de contacto directo com os norte-coreanos realizada por um escritor cheio de boas intenções mas que nem sequer fala coreano, com visita a monumentos e museus e discursos programados, estava condenada à partida. Mas Peixoto não resistiu a querer fazer dela mais do que foi: uma visita turística à Coreia do Norte. E se, como escreve três vezes para não termos dúvidas, é contra ditaduras e regimes totalitários, a verdade é que se deixa levar pelo entusiasmo e embarca na propaganda do regime norte-coreano de uma maneira ingénua e perigosa; dá-lhe um rosto humano de incrível tranquilidade e mansidão: "Nesse momento, pareceu-me saber exactamente porque tinha ido à Coreia do Norte. Entre as casas, no emaranhado de ruas estreitas, podia ver um homem a passar de bicicleta, uma mulher velha a puxar uma vaca, ou um grupo de rapazes que corriam atrás de um papagaio de papel, uma cor tranquila que deslizava e que continuava a ver sobre os telhados, mesmo depois de os rapazes desaparecerem."

É como se, na câmara de torturas, José Luís Peixoto fosse o encarregado de descrever o ambiente geral, mas sem torturadores nem torturados. E a câmara de torturas passasse a ser apenas um espaço de tranquilo silêncio, afastado do mundo, onde o escritor pudesse pensar e ler Dom Quixote tranquilamente à luz de uma lanterna. Até a escolha de levar uma cópia clandestina do Cervantes para a Coreia do Norte (é proibido entrar com livros) parece adequada ao retrato do escritor enquanto desafiador dos moinhos norte-coreanos; escapulindo-se para entrar numa loja quando ninguém está a ver, tirando fotografias sem autorização, fazendo jogging em Pyongyang quando especificamente lhe tinham dito para não deixar o hotel; concluindo que uma mulher no laboratório está a fingir que é uma mulher num laboratório.

José Luís Peixoto vai a um país que inventou uma narrativa heróica para o seu próprio povo que morre à fome ou nos campos de reeducação; está numa cidade como Pyongyang que é ela mesmo o cenário para essa narrativa heróica - só as pessoas com autorização podem entrar na capital norte-coreana e a maioria dos norte-coreanos não tem autorização para lá entrar -; vai numa visita guiada onde se papagueiam as histórias propagandísticas sobre Kim Il-sung e Kim Jong-il e afirma, como se fosse isso o sinal importante, a chave para desvendar tudo: "Este tipo de encenações arrasava a credibilidade dos momentos que tinha acabado de viver e lançava suspeitas sobre os que se aproximavam." A Coreia do Norte é um país onde marido e mulher podem denunciar-se mutuamente por pensamentos impuros, por duvidarem da magnanimidade da dinastia Kim; onde as pessoas vivem num regime feudal em que os senhores da terra dispõem da sua vida e da sua morte, e José Luís Peixoto descobriu, porque tem uma irmã engenheira química e um cunhado professor e investigador, que aquela mulher é uma impostora num laboratório a fingir. E o mais interessante é que o escritor considera credíveis os momentos que acabou de viver numa fábrica inventada, num país a fingir que é o paraíso na terra e que Kim Il-sung é Deus.

De acordo com várias fontes que escreveram sobre a Coreia do Norte, muitas das fábricas do país não produzem por falta de matéria-prima, por obsolescência da maquinaria e por falta de peças. Continuam a existir e a empregar pessoas que nada recebem e nada fazem: fogo-fátuo industrial num país que sobrevive por estar ligado à máquina chinesa. Não serão aquelas fornalhas com esse fogo que o escritor tanto admirou maior ilusionismo do que uma mulher num laboratório fandango? Não será esta viagem, este livro, sob a capa do segredo desvendado, a verdadeira ilusão?

Os maiores especialistas na Coreia do Norte colocam sempre reticências quando falam do país. Porque se o regime totalitário conseguiu a proeza de fechar o seu povo ao mundo, alcançou outra proeza de vulto, fechar o seu povo à percepção do mundo. E quando esses especialistas falam deixam sempre espaço para a dúvida, porque nada na Coreia do Norte é o que parece. Como se não conseguíssemos distinguir as fachadas falsas dos verdadeiros edifícios. Como essas sofisticadas contrafacções dos produtos de luxo que em nada se distinguem do original, a não ser pelo facto de serem falsas. Como as lágrimas de pranto nos funerais de Kim Jong-il - se não chorar é sinal subversivo e chorar o esperado, o exigido, o obrigado, como se distingue aqueles que choram sinceramente dos que choram porque das lágrimas depende a sua vida?

Todos nós que escrevemos já caímos nessa armadilha, a de pensar que podemos contar algo diferente do que já foi contado. De contribuir para a narrativa de um lugar, de uma pessoa, de uma instituição. Às vezes por ingenuidade, na maior parte das vezes por entusiasmo. Daí não vem mal ao mundo, a não ser quando deixamos de ter sentido da proporção, quando nos deixamos transformar na história: "No quarto, com tempo para pensar, parecia-me às vezes que também eu estava assim, fechado duas vezes. Fechado naquele país que não me deixava ter telemóvel, que não me deixava receber emails e fechado num segredo. (...) Ali era eu que estava desligado e guardado numa gaveta. Aquela era uma morte sem notícias do que deixava para trás."

Adorno afirmou que depois do Holocausto "escrever poesia era bárbaro", Hannah Arendt mostrou-nos que tratar o mal como excepção, calá-lo como experiência e não ter em conta a sua condição intrínseca à humanidade impede-nos de evitar que se repita. Porém, falar sobre o mal implica responsabilidade. E a Coreia do Norte é o Holocausto que nunca termina.

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