Carta aberta à ministra da Justiça
Encontra-se em discussão pública o projeto de lei que se propõe realizar uma profunda reforma na organização judiciária nacional.
Um dos objetivos centrais desta reforma diz respeito à especialização dos tribunais. Com efeito, ao nível dos tribunais de primeira instância, a medula da reorganização judiciária assenta na criação de condições para a sua especialização, com a instituição de secções especializadas nas instâncias centrais de cada comarca. Esta é, assim também o pensamos, a solução acertada e o caminho correto para a boa administração da justiça - conquanto o objetivo da especialização não se torne num boi Ápis, uma vez que, como é sabido, a especialização excessiva acarreta mais inconvenientes do que vantagens -, permitindo uma maior racionalização de recursos e, sobretudo, assim se espera, uma melhor qualidade e maior celeridade das decisões judiciais.
Acontece que este aspeto crucial da reforma é, na última proposta do Governo que veio a público, absolutamente desconsiderado, rectius, é completamente subvertido no que respeita ao Tribunal da Relação do Porto. Com efeito, propõe-se ali - sem qualquer razão ou fundamento plausível - que sejam retirados da alçada deste tribunal os distritos de Bragança e Vila Real, os quais, aliás, sempre estiveram no âmbito da sua jurisdição. E, desta forma, impossibilita-se no âmbito deste tribunal de recurso - e é porventura, nesta sede, onde ela é mais necessária - a almejada especialização, uma vez que esta implica necessariamente massa crítica, i.e., um volume suficiente de trabalho que permita e justifique tal desiderato, o que não se verificará com a proposta que está agora em cima da mesa.
Por isso, esta amputação da jurisdição do Tribunal da Relação do Porto está em total contradição com os objetivos da reforma, impedindo, na prática, aquilo que se proclama e que se pretende promover: a especialização judicial. E, importa sublinhá-lo, esta proposta traduz-se numa real ablação do próprio Tribunal da Relação a se - que não atinge apenas as suas competências -, constituindo uma agressão gratuita ao mais antigo tribunal de recurso do país, bem como a esta região e às suas gentes (mormente àquelas que deixariam de ficar sob a alçada do tribunal), que inequivocamente se reveem e aceitam a auctoritas deste vetusto tribunal, a qual se alicerça em séculos de história e que não se consegue alcançar nem conquistar por decreto.
O Tribunal da Relação do Porto é efetivamente, convém lembrá-lo, o tribunal superior mais antigo do país (data de 27 de julho de 1582). Nenhum outro tribunal nacional pode reclamar idênticos pergaminhos. Trata-se de uma instituição nacional, constituindo juntamente com a câmara municipal e a universidade uma das instituições historicamente emblemáticas e estruturantes da cidade e da região. Nas quais se tem, aqui, um justificado orgulho e apreço, só desconhecido por quem nunca respirou as névoas que sobem do Douro.
Acresce que não há razões de ordem logística ou outras que justifiquem aquele esvaziamento deste tribunal. O edifício do Palácio da Justiça dispõe de todas as condições para continuar a albergar, como até aqui, um Tribunal da Relação do Porto à altura da sua história. Aliás, a imponência e a elegância deste granítico edifício - que ficaria claramente subaproveitado com a projetada solução - contribui também para o prestígio e a dignificação da Justiça; de facto, para o fenómeno de descredibilização da Justiça que se vive terá também, estamos certos, concorrido o facto de os tribunais terem sido instalados em edifícios que não foram construídos de raiz para esse efeito e sem as condições adequadas ao exercício de tão importante função como é a de julgar.
Donde, esta proposta de ablação do Tribunal da Relação do Porto, para a qual não se divisa critério nem fundamento, a ser levada à prática, seria um profundo erro histórico, e, reitera-se, constituiria um ato gratuito de agressão àquela instituição, à cidade do Porto, bem como às regiões que ficariam de fora da jurisdição deste tribunal, traduzindo-se em um ato nu de poder.
Que não é seguramente o que se pretende e, nisso queremos acreditar, não virá a acontecer. Temos plena confiança na boa fé, no mérito e nos objetivos que inspiram esta reforma, na necessidade de coerência em que tem de assentar e nos valores que deve respeitar. Retificar um erro, corrigir trajetórias, ser firme na decisão de melhorar, não é sinal de fraqueza. É sinal de coragem e de inteligência.
É, por isso, senhora ministra da Justiça, que lhe solicitamos que reveja esta desastrada e infundada proposta relativa ao Tribunal da Relação do Porto.