Em breve algumas “drogas legais” podem passar a ilegais
Desde 2007 que há lojas que se especializaram na venda de substâncias psicoactivas. Uma proposta de lei com o objectivo de evitar a comercialização livre de substâncias que ponham em risco a saúde pública pode ser conhecida ainda esta semana.
"Já ouviram falar das mortes na Madeira?", pergunta o PÚBLICO. Entre Janeiro e Agosto, houve quatro mortes que se diz estarem relacionadas com o consumo destas substâncias. Aliás, naquela região autónoma, a notícia dessas mortes fez acelerar o processo de criação de uma lei para proibir a venda, a importação, a exportação e a publicitação de “drogas legais”. Em Portugal continental, o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), espera avançar, até à próxima semana, com uma proposta de lei que terá algumas semelhanças com a lei regional.
Os amigos parecem apreensivos. Querem usar nomes fictícios “por causa dos pais”. Edgar tem 20 anos e estuda Filosofia. Isabel, de 21, Física, tal como Paulo, de 23. Madalena tem 19 e é estudante de Psicologia.
“[As mortes] foram por causa de cenas fumáveis?”, pergunta Paulo, que tira do bolso do casaco uma pequena saqueta roxa com motivos indianos, onde pode ler-se “Mandala, incenso herbal”.
O grupo sai duas a três vezes por semana para fumar e enumera os produtos que já experimentou. Tudo incensos. Nas lojas, explica, os funcionários perguntam-lhes o que já conhecem e aconselham-nos. Os maiores sustos aconteceram devido a quebras de tensão. E quando isso acontece, Isabel, Madalena, Edgar e Paulo já sabem o que fazer: ingerem açúcar e esperam que passe.
Nunca pensaram em ir ao hospital e desvalorizam as notícias que dão conta de complicações relacionadas com o consumo destas substâncias. Mas a pergunta sobre a Madeira preocupa Isabel que pergunta: “Ninguém morre por causa disto, pois não?”.
Ervas, incensos, fertilizantes e sais de banho
O grande objectivo da nova proposta de lei a ser apresentada pelo SICAD é o de criminalizar as substâncias psicoactivas que compõem a maioria das chamadas drogas legais à venda nas smartshops, sob a forma de pílulas, ervas, incensos, fertilizantes e sais de banho.
A maioria das substâncias à venda nestas lojas são parentes próximas de substâncias proibidas mas que, devido a pequenas alterações na estrutura molecular, transformam-se noutras cuja comercialização não está criminalizada. A velocidade a que as novas substâncias surgem dificulta o procedimento de ir acrescentando substâncias à lista das que são abarcadas pela legislação em matéria de droga.
Segundo o relatório do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência de 2012, nos últimos anos assistiu-se a uma ampla disponibilização de substâncias psicoactivas na Europa. Se entre 2005 e 2011 foram notificadas 164 novas substâncias, só em 2011 foram detectadas 49.
Por isso mesmo, a nova proposta de lei pretende criminalizar as duas "grandes famílias de substâncias" – os canabinóides sintéticos e as catinonas – que compõem a vasta maioria dos produtos comercializados nas smartshops do país.
João Goulão, presidente do SICAD, explica ao PÚBLICO que com a nova proposta de lei será criada uma lista de quarentena temporária, semelhante ao que acontece no Reino Unido, onde certas substâncias identificadas são rapidamente sujeitas a controlo ao abrigo da legislação em matéria de droga no máximo durante um ano. Segundo o presidente do SICAD, será uma “espécie de antecâmara para a criminalização”.
O objectivo, continua João Goulão, não é levar ao encerramento das smartshops, mas “proibir a venda de produtos com riscos para a saúde pública”. Contudo, na Madeira, desde a entrada em vigor do decreto-lei de 31 de Outubro, as seis smartshops que existiam “fecharam por iniciativa própria”, informa Nelson Carvalho, director do Serviço de Prevenção da Toxicodependência da região.
Nelson Carvalho tem alguns números que, na sua opinião, comprovam a eficácia da nova lei: antes da entrada em vigor do decreto-lei eram registados, em média, cinco casos por dia de problemas relacionados com o consumo destas substâncias. Neste momento, garante, esse número é de um caso diário. Na Casa de Saúde de São João de Deus, entre Janeiro e Outubro, foram internadas 25 pessoas por mês, sobretudo com surtos psicóticos, um número que baixou para quatro depois da publicação do decreto.
João Goulão lembra que “as smartshops são uma percentagem pequena dos problemas associados ao consumo de substâncias psicoactivas”. E diz que é preciso não perder de vista o consumo das substâncias clássicas como o álcool, a heroína, ou a cocaína.
A primeira smartshop chegou a Portugal em 2007, em Aveiro. Desde então, estas lojas espalharam-se por todo o país e de acordo com o SICAD, actualmente serão cerca de 40.
João Goulão diz que o principal problema das smartshops consiste no facto de serem lojas de porta aberta. Isto tem um “peso simbólico e dá uma falsa sensação de segurança aos consumidores mais incautos que pensam: 'Se é legal e se é vendido numa loja não pode fazer mal'”.
Quem compra é que sabe o que quer fazer, até porque, como diz Stephanie Tourcotte, responsável da marca Magic Mushroom em Portugal, “não é muito diferente de ir a um supermercado comprar cola e um saco de papel e depois cheirar”. Nesse caso, pergunta, “a culpa é do supermercado?”
O problema surge quando os vendedores das smartshops indicam aos clientes como consumir tais produtos para obterem um efeito psicotrópico, acusa João Goulão. Hélder Pavão, outro dos responsáveis da Magic Mushroom, recusa esta ideia: “informamos que não é para consumo humano, que são incensos”. À pergunta do PÚBLICO sobre alguns consumidores dizerem que os funcionários explicam como fazer para obter um efeito psicotrópico, Hélder Pavão acaba por dizer: “As pessoas por vezes insistem na questão do consumo e nós dizemos que sabemos que há pessoas que consomem e que se isso acontecer há precauções que devem tomar”.
“Somos dependentes de erva”
No ano passado Luísa (nome fictício), 23 anos, teve uma má experiência com um dos produtos comprados em smartshops. Em Évora, cidade onde estudava, existe uma loja onde comprou um produto. A rapariga garante que pôs “mesmo muito pouco” dessa substância numa mortalha. O suficiente para que ao fim de dois bafos, o coração começasse a bater com tanta intensidade que esteve mais de uma hora sem se mexer, com medo de que se o fizesse, o coração acabaria por explodir e ela morreria.
No site online da loja eborense o produto é descrito como o “mais poderoso do mercado” e é dada a indicação de que “basta muito pouco para que possa chegar onde quer”. Desde essa experiência, Luísa, que calcula ter ido cerca de dez vezes a smartshops, não quer voltar. Já o amigo Frederico (nome fictício), 24 anos, é cliente de várias, tendo até o cartão de sócio da Magic Mushroom. “Não somos dependentes dos produtos das smartshops. Vamos a essas lojas por causa da nossa dependência de erva”, explica Luísa.
Na altura em que começaram a frequentar as smartshops, fizeram-no porque os produtos eram mais baratos do que a erva e porque era uma forma mais fácil de ter acesso àquelas substâncias. Mas acham que esses produtos são mais perigosos. Por isso, Frederico faz uma sugestão: “Fechem todas as lojas, mas legalizem a erva”.
Controlo para as drogas legais
Na Magic Mushroom, Stephanie Tourcotte tem uma opinião semelhante: se a cannabis estivesse legalizada não seriam necessárias as drogas que se vendem nas smartshops. E está convencida que se liberalizarem o consumo, este não aumentará.
Hélder Pavão diz que “as drogas legais são as drogas do século XXI” e por isso acha que a ilegalização não é o melhor caminho: “À velocidade a que a sociedade caminha é necessário haver um ajustamento da lei. Queremos um controlo para as drogas legais – uma regulamentação das idades em que é possível começar a consumir, visitas da ASAE às lojas…”.
“Gostaríamos de nos sentar com o Dr. João Goulão e trabalhar com ele uma proposta de lei”, diz Stephanie Tourcotte, acrescentando: “Sabemos que há um grupo de trabalho das smartshop – porque é que nunca vieram falar connosco?”
Quanto à questão da legalização do consumo das chamadas drogas leves, nomeadamente a cannabis, João Goulão responde que, apesar dessa discussão estar na ordem do dia em muitos países, “há outras prioridades na sociedade portuguesa neste momento”. Por isso mesmo, o debate não vai avançar, pelo menos para já. Mas acrescenta que a haver uma decisão no sentido da legalização, essa deve ser uma decisão tomada por um conjunto de países e não apenas por um.