O programa político de Karl Popper: do historicismo à engenharia parcelar
Com a releitura de A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, terminamos a apresentação de quatro obras fulcrais escritas no final da II Guerra por Keynes, Hayek, Polanyi e Popper que hoje estarão em debate na Biblioteca Nacional, em Lisboa
Apropósito da nova tradução do primeiro volume de A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos (1945), não faria sentido tentar esboçar sequer o estado da discussão sobre o livro de um ponto de vista académico ou descrever os debates em torno da filosofia da ciência e da epistemologia das ciências sociais de Popper. Basta sublinhar que se trata da sua mais importante obra neste domínio e a que maior influência teve no pensamento político da segunda metade do século passado. As razões da importância do livro e do seu impacto são diversas e o contexto do após guerra em que é lida não é desprezível. O elemento academicamente provocador e intelectualmente perturbante foi o alinhamento que o autor fez de três filósofos fundamentais, que estão, a seus olhos, na génese da formação de programas políticos totalitários: Platão, Hegel e Marx. Para Popper, não é, pois, só a eclosão de racionalidades totalitárias próprias do século passado que circunscreve aquilo a que chamamos totalitarismo. Na verdade, a raiz desse mal é congénita à própria racionalidade ocidental, pelo menos na versão que percorre uma linha protagonizada por aquelas figuras e chega até nós. O mérito indesmentível de Popper foi o de identificar essa linhagem, entrar meticulosamente nos sistemas de Platão e de Marx (a parte dedicada a Hegel, ou seja, um único capítulo no conjunto de 25, é bastante mais incipiente) e procurar definir uma outra linha de racionalidade, que funcionará como antídoto e terapêutica do mal totalitário. O seu conhecimento profundo de diversos capítulos da história da filosofia e a total imersão no pensamento de autores de obras tão vastas como difíceis, em particular as de Platão e de Marx, ajudam-no a desenvolver uma argumentação com bastante segurança conceptual e objectivos claros. Também é mérito de Popper recordar a imprevisibilidade incontornável dos processos sociais, sem dúvida ancorada numa natureza, ela própria criativa e oscilante do ser humano. No entanto, ao leitor imerso nos problemas do mundo actual, mais do que avaliar a correcção e o mérito académicos de Popper no que respeita à história da filosofia, importa sobretudo verificar em que medida o seu próprio pensamento filosófico-político é uma proposta forte de interpretação e previsão. Na verdade, é minha convicção que se, do ponto de vista da crítica às sociedades fechadas, nas suas diferentes modalidades, a argumentação de Popper suscita uma simpatia natural em todos aqueles que defendem a primazia da liberdade individual ou que não querem olhar a história como a mecânica de forças que se dirigem a um fim inelutável, não é menos verdade que grande parte da sua argumentação a favor de um pensamento alternativo é decepcionante em muitos aspectos.
O "engenheiro parcelar"
É contra as filosofias historicistas que Popper constrói a sua proposta de um novo método para as ciências sociais e políticas. O historicismo, que encontra os seus principais protagonistas nos três filósofos já referidos, é, mais do que uma teoria, uma metafísica que reclama o conhecimento das leis mais gerais da história, às quais estão submetidos os indivíduos e as sociedades. Absorvidos por um determinismo absoluto, os agentes políticos não são mais do que instrumentos inseridos na totalidade dos eventos históricos, cuja lógica evolutiva apenas é conhecida pelo próprio filósofo historicista. Este atribui ao seu próprio conhecimento das leis históricas universais um estatuto de ciência, mas é fácil compreender que se trata de uma mistificação. Os casos de Platão (Popper acrescenta, no princípio do segundo volume de A Sociedade Aberta..., Aristóteles, sem atender ao facto histórico de que este foi um dos críticos fundamentais do sistema político platónico), de Hegel e de Marx são os mais relevantes para a reconstituição da metafísica historicista. Pode afirmar-se que Popper constrói a sua filosofia política por contraste sistemático com o historicismo, quer no plano do método e da epistemologia das ciências sociais, quer no plano político. Assim, ao agente político historicista ou "engenheiro utópico" nos termos de Popper, contrapõe ele um outro agente, com um método muito mais humilde, mas menos perigoso, o "engenheiro parcelar", estatuto que ele reivindica para seu pensamento político. A metodologia política e social que cada um utiliza é substancialmente diferente: o primeiro aplica um suposto conhecimento das leis da história para a criação de uma sociedade perfeita (no fundo, um método totalmente determinista que desemboca num totalitarismo), o segundo limita-se a aplicar um método de tentativa e erro para, por exemplo, melhorar esta ou aquela instituição, corrigir uma legislação particular ou alterar o modelo errado com que trabalhou. Ao engenheiro parcial é permitido, admite Popper, planear, mas só "porque já cometeu toda a espécie de erros; ou, por outras palavras, porque se apoia na experiência que ganhou pela aplicação de métodos casuísticos" (p. 204 da trad. portuguesa). Uma outra característica fundamental das engenharias políticas, segundo Popper, consiste na natureza cognitiva, essencialmente diferente em ambos os casos. Também aqui só é permitida à engenharia parcelar a formulação de predições, enquanto o engenheiro utópico produz profecias. Aliás, profecias são predições adulteradas pelo historicismo. Este contraste entre as duas engenharias é um dos eixos, talvez o mais importante, em torno do qual gira o seu pensamento político e por isso é importante discutir a distinção.
Predição e profecia
O que distingue uma predição de uma profecia? Quando e com que critérios distingo uma predição não historicista de uma profecia historicista? Como o próprio Popper esclarece, a diferença não reside no facto de uma (a profecia) se referir a longos períodos e a outra (a predição) apontar para limites temporais mais curtos. Infelizmente, tanto na Sociedade Aberta... como noutra obra dedicada à critica do historicismo, A Pobreza do Historicismo (1957), o filósofo não esclarece suficientemente a crucial diferença entre profecia e predição, ao argumentar em círculo vicioso que a predição profética é inaceitável porque assenta numa concepção historicista e que esta é, por sua vez, ilegítima porque se traduz em juízos proféticos. Nesse sentido, quando se acusa um cientista social ou político de produzir um juízo profético deverá demonstrar-se que tal juízo supõe uma filosofia historicista com a carga negativa que Popper lhe confere. Nessa altura deverá demonstrar-se o historicismo da teoria, o que, por sua vez, remete para a discussão da qualidade profética dos juízos políticos. Deverá, no fundo, demonstrar-se que essa predição profética pressupõe um pseudoconhecimento das leis da história e que é uma representação utópica de um estádio diferente da humanidade, as duas grandes características do historicismo. Porém, é fácil encontrar bons exemplos históricos de predições de longo prazo, que assumem conhecimento de leis da história e que, à primeira vista, aparentam ser meras utopias. Como classificar a famosa antecipação feita por Kant, no século XVIII, da constituição, num longínquo futuro, de um todo cosmopolita de Estados, dotados de constituições republicanas e que de algum modo prefigura a actual ONU, mesmo que esta integre ainda numerosos Estados longe dos requisitos de Estados de direito? Estamos perante uma predição de engenharia parcial ou de uma profecia? Eu diria que nenhum dos termos é aqui adequado e, em meu entender, essa representação do futuro deve antes ser entendida como uma antecipação desejável de uma conjuntura política e jurídica de qualidade civilizacional superior. Se é certo que realmente Kant antecipou, à distância de mais de dois séculos, uma organização política comum de Estados de direito, ou pelo menos em que essa estrutura tende a prevalecer sobre os Estados não subordinados à lei e direitos humanos, então parece estarmos perante uma boa utopia de um bom historicismo. O que não é plausível é que essa predição resulte seja do trabalho de uma "engenharia utópica" que conduza a um totalitarismo, seja de operações de engenharia parcelar defendida por Popper. Lembremo-nos que esta engenharia é apenas dirigida ao aperfeiçoamento de instituições pelo método da tentativa e erro.
Greenspan ou Roubini?
Seria porventura mais interessante que Popper utilizasse um outro critério que ele próprio introduz de forma inovadora na sua epistemologia geral, ou seja, o critério da refutabilidade ou falsificabilidade das teorias. Na verdade, é apenas no último capítulo (25) da Sociedade Aberta... que o autor usa explicitamente esse critério de demarcação entre teorias científicas e metafísicas e o aplica no domínio das ciências sociais e políticas. Pelo menos, esse critério funcionaria como uma linha de demarcação mais objectiva entre uma proposta política historicista e utópica (profecia) e outras teorias sujeitas a refutação por este ou aquele acontecimento. Por exemplo, predições contraditórias, mas refutáveis, sobre a futura saúde do sistema financeiro foram feitas nos anos imediatamente anteriores ao eclodir da crise actual. Recordemos os exemplos de Alan Greenspan, que em 2005 assegurava que nada haveria a recear no futuro em relação à economia global, e do economista Nouriel Roubini que, mais ou menos na mesma altura, previu a grande recessão no mundo desenvolvido. Trata-se de duas predições, ambas refutáveis, uma errada e outra certa. Popper diria que estes são exemplos de engenheiros parcelares, cujas teorias possuem um grau de refutabilidade suficiente de modo a comprovar a respectiva verdade ou falsidade. Tendo essa característica, elas afastam-se, por isso mesmo, do perigo de qualquer totalitarismo utópico. Em certa medida, isso é verdade, porém não é menos certo que o critério da refutabilidade também é problemático e originou um amplo debate sobre a filosofia do conhecimento popperiana que está longe de estar encerrado. Por definição uma teoria historicista, no sentido que ele dá a este conceito, não é refutável. No entanto, sabemos que muitas predições que se encontram dispersas nos três autores (exemplos maiores de filosofias historicistas) criticadas na Sociedade Aberta, sujeitam-se à refutabilidade. Por exemplo, quando Hegel defende que a mais elevada forma racional de um Estado é a sua organização corporativa ou quando Marx e Engels prognosticam o advento inelutável de uma sociedade sem classes, confrontamo-nos com teses refutáveis e que foram, mais tarde, submetidas ao que chamaria testes empíricos da história. É claro que o critério da refutabilidade, usado neste domínio das ciências sociais, levanta ainda mais dúvidas do que quando é aplicado no contexto das ciências naturais, desde logo porque é sempre possível ao cientista social ou político, autor de uma tese refutada num determinado momento, reclamar que afinal ela é válida como a história irá comprovar a longo prazo. Trata-se só de uma questão de esperar que a história a comprove.
Em suma, ancorar uma filosofia política na distinção entre profecia historicista e predição assente no método da tentativa e do erro não parece produzir resultados interessantes e deixa no ar mais problemas do que aqueles que resolve. O programa político do "engenheiro parcelar" de Popper, limitado ao método da tentativa e do erro é bastante pobre, na medida em que se limita à correcção de erros cometidos no passado. Acrescentarão os defensores desta engenharia que essa metodologia é a única que pode proteger a liberdade dos indivíduos face aos abusos do Estado, já que este deve autolimitar-se enquanto entidade apenas protectora dessa liberdade. Nas décadas que se seguiram às experiências nazis e fascistas, e nas quais o comunismo assumiu a forma do totalitarismo em vastas zonas do planeta, os programas políticos que defendem o Estado mínimo são perfeitamente compreensíveis. A dúvida é se o "engenheiro parcelar" de Popper tem hoje muito a dizer num mundo em que a percepção dos perigos e dos riscos são outros, muito diferentes. Por mim, penso que quase nada tem a dizer.