Relendo A Grande Transformação no nosso tempo

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Para Karl Polanyi, o problema fundamental não é puramente económico, mas sim o da relação entre a economia e a sociedade Fotógrafo

Em 1944, o húngaro Karl Polanyi criticava os efeitos destrutivos dos mercados e o facto de estes se terem autonomizado das instituições sociais. Mas será a crítica inscrita em A Grande Transformação uma resposta para a crise que enfrentamos?

A Grande Transfor-mação: as origens políticas e económicas do nosso tempo, de Karl Polanyi, recen-temente republica-do entre nós, é uma das obras essenciais para tentar entender o alcance das mu-danças ocorridas na história económica, social e política desde o século XVIII até meados do século XX - quer se acompanhe quer se rejeite a sua tese central e a interpretação histórica que lhe está subjacente.

A ideia fundamental, e inovadora, do livro é a de que o advento do capitalismo, e das propostas intelectuais que o justificaram num "credo liberal", teria levado à autonomização e prevalência de um mercado auto-regulado, antes sempre "incrustado" em instituições sociais e políticas, o qual teve de ser estendido a "mercadorias fictícias" desde sempre naturalmente fora do seu alcance, como a força de trabalho, a natureza (a terra) e a moeda, impondo-lhes a inexorável lei da oferta e da procura. A prevalência do mercado auto-regulado e autonomizado das instituições sociais em que se integrava, com lógica e movimento próprios determinados por flutuações da oferta e da procura, seria, porém, não só em última instância utópica, e impossível, como desde logo destruidora da própria sociedade, tendo provocado necessariamente um movimento inverso, de "autoprotecção da sociedade", em todos os países que a conheceram. Este "duplo movimento" e a "autoprotecção da sociedade" explicariam a história política e social da reacção contra os efeitos destrutivos do capitalismo, e estariam, mesmo, na origem dos movimentos sociais e políticos que, como reacção extrema contra a lógica destrutiva da sociedade pelo mercado, desembocaram nos totalitarismos da primeira metade do século XX. Seria essa a explicação profunda, económica e política, para a "transformação de toda uma civilização" durante os "revolucionários anos 30" do século XX, depois da "paz de cem anos" no sistema internacional do século XIX.

Karl Polanyi nasceu em Viena, numa família da burguesia judaica, fez a sua educação em Budapeste e, depois de participar nas campanhas da Rússia na I Guerra integrado no exército austro-húngaro, foi editor da secção de relações internacionais de um semanário económico de Viena. Em 1933, emigrou para Inglaterra, onde viveu até 1947, tendo-se depois mudado para o Canadá, onde residiu até final da vida. A Grande Transformação, publicada pela primeira vez em 1944, foi escrita entre 1940 e 1943, quando Polanyi era investigador visitante numa instituição universitária do Vermont.

Quase um policial

A Grande Transformação é um livro quase emocionante, já comparado a um "policial de história económica pleno de objectivo e de suspense", que leva o leitor desde a primeira página a uma revisitação das mudanças da civilização europeia desde a Inglaterra pré-capitalista (com as tensões entre nobreza e população escorraçada dos campos pelas enclosures) até à eclosão da II Guerra. E é também uma obra inspiradora, cheia de sugestões e de caminhos de investigação abertos, e até, em vários aspectos, prenunciadora de futuras áreas das ciências sociais - como a sociologia económica e a nova economia institucional, a teoria dos sistemas e a teoria crítica. O problema fundamental para Karl Polanyi não é, com efeito, puramente económico - é, antes, o da relação entre a economia e a sociedade, do modo como o sistema económico afecta as relações entre os indivíduos, com os seus reflexos determinantes na história. Polanyi rejeita quer o totalitarismo soviético quer a utopia do mercado, concluindo pela necessidade de nos confrontarmos com a realidade da sociedade sem rejeição do postulado da liberdade. Em nome deste postulado rejeita o fascismo, e (embora também recuse a associação da resposta a um só nome) termina remetendo para o socialismo de Robert Owen como assunção da exigência de liberdade numa sociedade moderna complexa - a fidelidade à tarefa de ampliar a liberdade para todos afastaria o receio de que o poder ou as medidas do plano se voltassem contra a liberdade que através dele se quer construir, e esta seria "toda a certeza que nos é necessária".

Um pensamento actual?

Tem sido salientada uma alegada actualidade do pensamento de Karl Polanyi numa época em que, depois da extensão a todo o planeta da economia de mercado livre, e da queda, a partir de 1989, das "ditaduras do plano", ditas "socialistas", o sistema económico mundial voltou a conhecer uma crise global, agora com origem no capitalismo financeiro, a partir de 2008. E vale sem dúvida a pena reler Polanyi neste contexto, sendo só por isso já de saudar a oportuna republicação da obra - para mais, com dois ensaios introdutórios (relativos à sua interpretação no actual contexto e à sua relação com a sociologia económica), um prefácio de Joseph Stiglitz (que destaca justamente a actualidade do livro) e uma introdução explicativa por Fred Block.

Um juízo que se queira descomprometido não pode, porém, deixar de salientar o que parecem ser algumas limitações, ou mesmo falhas, na obra de Polanyi. Estas centram-se, desde logo, na sua abordagem da história económica, em que defende que, na realidade, a economia de mercado foi uma novidade histórica, com um mercado (dito "auto-regulado") que passou a incluir, por exemplo, a força de trabalho e a terra. Para Polanyi, os mercados não se formaram como resposta à necessidade de transacções (indo, por isso, Polanyi ao passado remoto em busca de sociedades sem mercados), sendo antes as transacções governadas em sociedades pré-capitalistas por princípios como a redistribuição, a reciprocidade e a administração caseira.

Ora, como nota Deirdre McCloskey, Polanyi parece ter posto a questão correcta, das relações entre a sociedade e o mercado, mas não deu a resposta certa, pois existem hoje amplas provas da existência de sociedades pré-capitalistas com verdadeiros mercados, e em que mercadorias como a força do trabalho e a terra eram trocadas segundo um mecanismo de preço, isto é, em obediência à lei da oferta e da procura. A perspectiva histórica de Polanyi parece, aliás, enfermar de mitificação do passado pré-capitalista, que compara favoravelmente à sujeição do trabalho, da terra e da moeda à "frieza" do mecanismo do preço no mercado auto-regulado, com os seus terríveis efeitos destrutivos sobre a sociedade, omitindo, porém, os muitos resultados positivos (desde logo, no plano demográfico) que a economia capitalista e a sociedade industrial tornaram possíveis. E não parece que seja convincente tentar retirar conclusões a partir dos mecanismos de sociedades primitivas (por muito que se acredite num "bom selvagem") para a análise das relações entre a sociedade e o mercado a partir do século XVIII.

É certo que a afirmação e autonomização do mercado, com sujeição da generalidade das relações sociais à sua racionalidade estratégica, constituiu um dos casos claros de "colonização do mundo-da-vida" por uma racionalidade sistémica - neste caso, pelo sistema económico. Mas pode seriamente duvidar-se de que os efeitos dessa "colonização" sobre o bem-estar social geral tenham sido globalmente negativos. Em vez de apenas dilacerar tragicamente as relações sociais imperturbadas da era pré-capitalista, o capitalismo permitiu, sobretudo depois de mitigados os excessos dos primeiros embates da industrialização, o aumento da população e a abertura, a muitos que num mundo pré-capitalista teriam sido marginalizados, ou que nem sequer teriam chegado a existir, para um nível de vida mais elevado e para uma ocupação que lhes permite ganhar a vida.

A questão das normas

Um aspecto central da abordagem de Polanyi é a sua concepção de mercado "desincrustado" e "auto-regulado", em contraposição aos mercados anteriormente integrados no tecido social. Polanyi chamou correctamente a atenção para a necessidade de se ter em conta variáveis sociológicas nas análises económicas - a relação entre a economia e a sociedade. Mas é duvidoso que o próprio "credo liberal" alguma vez tenha defendido uma tal autonomização e prevalência do mercado sobre quaisquer outras normas e valores sociais, a qual, como Polanyi nota, seria desde logo utópica. É claro que os mercados estão sempre "incrustados" num conjunto mais amplo de instituições - incluindo normas e valores que são mesmo, em grande medida, pressupostos para a própria existência e funcionamento do mercado. A questão fundamental é justamente a de saber qual é o tipo de normas institucionais e sociais necessárias para tornar possível a cooperação social, e a mais eficiente afectação de recursos, na maior escala possível. Parece ter sido este, por exemplo, o contexto em que Adam Smith colocara o seu apoio aos mercados e a evocação do interesse próprio, integrados num mais amplo sistema ético (que delineou na sua obra sobre a "teoria dos sentimentos morais").

É hoje património comum a ideia de que a economia de mercado pressupõe não só instituições e normas que possibilitem o seu funcionamento, mas também uma regulação que permita colmatar as "falhas de mercado", e prevenir crises como a que eclodiu a partir de 2008. É, assim, pelo menos duvidoso que só se possa aceitar que uma economia funciona segundo as regras do mercado quando existe um "mercado auto-regulado", como diz Polanyi.

Uma economia sem qualquer mercado a funcionar parece, na verdade, impossível a partir de certos níveis de complexidade, por não conseguir apresentar aos diversos sujeitos os vários preços relativos. Mas já não parece haver razão para concluir que qualquer regulação que seja - qualquer afastamento do extremo utópico do "mercado auto-regulado" - impede logo o funcionamento do mercado e da economia de mercado. Pelo contrário: a existência de regulação, formal ou informal, alterará o funcionamento do mecanismo de preços, mas não elimina por si só o funcionamento das forças do mercado dentro dos limites impostos pela regulação, e antes, em certo sentido, o possibilita.

A obra de Polanyi é particularmente interessante nos dias de hoje, quando de novo se levanta com acuidade, e agora a nível global, a questão das relações entre o poder económico e o poder político - forma específica da relação entre a sociedade global e o mercado que nela deva ser "incrustado". Mais, porém, do que queixarmo-nos sobre o laissez-faire e o mercado livre - paradigmas que triunfaram justamente por estarem associados a níveis de eficiência e de bem-estar sem paralelo na história da Humanidade, além de, pelo menos na maior parte dos casos, também a sociedades democráticas e liberais -, interessa perguntar o que se deve e pode fazer hoje para evitar uma destruição da força do(s) poder(es) político(s) democrático(s) pelas forças do mercado globalizado. E a resposta - se se quiser, uma certa forma de preservação da "incrustação" do mercado - só pode estar, a nosso ver, na constituição de mecanismos de governação e de regulação também globais (sem, porém, até lá, se renunciar à obtenção de condições de eficiência económica e de competitividade em cada país, não só por razões de subsistência mas também de preservação da necessária voz activa no contexto global). Será essa resposta hoje, se se quiser ainda utilizar conceitos de Polanyi, também parte indispensável do "duplo movimento", agora a nível global, necessário para a "autoprotecção da sociedade" mundial.

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