Hayek Anti-socialismo e Democracia Liberal

Foto
Hulton-Deutsch Collection/CORBIS

Figura central do liberalismo, Friedrich von Hayek emergiu da II Guerra Mundial com a preocupação de evitar que as democracias ocidentais fossem contaminadas pelo intervencionismo do Estado, que identificava tanto no socialismo como no nazismo, que considerava um "socialismo de direita"

OCaminho para a Servidão, do economista e filósofo Friedrich Hayek, mal foi publicado, em 1944, representou o mais importante breviário do antiestatismo liberal conservador da segunda metade do século XX. Publicado no Reino Unido, a obra de Hayek teve como objectivo explícito, segundo o próprio afirmou no prefácio, "escrever um livro político" e não um tratado de economia ou de ciências sociais.

Friederich August von Hayek tinha nascido em Viena em 1899, filho de pais da pequena aristocracia austríaca, numa família de cientistas e professores universitários. Hesitando entre seguir uma carreira associada à psicologia ou à economia, acabou por se afirmar na segunda, mas com a primeira a ser marcante nos seus trabalhos científicos. Destacando-se na Universidade de Viena no início da sua carreira, Hayek seria convidado a ensinar na London School of Economics em 1931, tornando-se cidadão britânico antes da grande vaga de refugiados do final dessa década. A marca mais saliente da sua formação veio de outro economista, Ludwig von Mises, que nos anos 1920, no seu Socialismo. Uma Análise Sociológica e Económica (1922), já tinha analisado e teorizado a impossibilidade de racionalidade económica sob um regime socialista. Mas em O Caminho para a Servidão Hayek abre, ainda que de forma abreviada e rápida, um tema que continuará a desenvolver com grande coerência e que está bem espelhada na sua trilogia dos anos 1970, Law, Legislation and Liberty: a da incompatibilidade entre ordem espontânea do mercado e da democracia, e justiça social.

A tese central da obra de Hayek é a de que a tentativa de planificação socialista da sociedade e da economia tem como consequência a pobreza e a tirania política. Mais do que a crítica do socialismo comunista, a grande preocupação de Hayek em 1944 era que as democracias ocidentais, sob a batuta de economistas e intelectuais associados aos partidos socialistas e sociais democratas europeus, pudessem seguir este caminho, o que levaria à destruição dos fundamentos da "civilização ocidental", para utilizar uma expressão da época. O mais destacado economista da sua juventude, Keynes, seria um dos visados. Em 1944, o comunismo soviético era um aliado das democracias ocidentais contra o fascismo, que tinha transformado em pouco tempo (e com que custo...) uma Rússia camponesa e atrasada numa União Soviética industrializada. A planificação económica, os modelos de intervenção do Estado na economia, e a reconstrução da Europa associada à edificação de Estados providência eram vistos com grande desconfiança por Hayek, e a sua obra destinou-se sobretudo a atacar esse eventual processo de contaminação ideológica, tentando provar a incompatibilidade entre democracia e planificação intervencionista do Estado.

A identidade do nazismo

Vários cientistas sociais criticaram desde logo as limitações de Hayek como analista da história política, caso de Herbert Finer, e a comparação entre nazismo e comunismo, foi uma delas. O grande esforço de Hayek foi o de contrariar a tese marxista de que o nacional-socialismo foi uma reacção capitalista à social- democracia alemã. O nazismo era para ele um "socialismo de direita" que tinha mais em comum com o correspondente "de esquerda" do que com o capitalismo liberal. Parece claro que a grande maioria dos estudos posteriores não confirmou esta equivalência simplista. De facto, o intervencionismo nazi coexistiu com a propriedade privada e elementos importantes de uma economia de mercado, ao contrário da ditadura soviética. É aliás curioso, como muitos críticos assinalaram, que Hayek não se tenha referido ao intervencionismo corporativo que caracterizou uma parte do universo ditatorial de direita na Europa desse período, que marcou a sua Áustria natal antes do Anschluss de 1938. Mas, mais uma vez, a obra de Hayek tinha objectivos políticos claros, e muitas dimensões dos sistemas políticos da Alemanha nazi e da Rússia estalinista possuíam uma identidade totalizante que estava nos antípodas da democracia liberal.

Se fosse apenas um bom panfleto político de época, o sucesso de OCaminho para a Servidão seria conjuntural e o legado escasso, o que não foi o caso. Os temas da intervenção do Estado na economia, da planificação e do "Estado Mínimo" iriam estar na ordem do dia por muitos e bons anos. Quase todos os estudiosos de Hayek apontam uma grande coerência na sua agenda de investigação posterior: a cooperação entre estranhos como condição do sucesso económico, a impossibilidade da planificação centralizada e a apologia do Estado mínimo. Uma economia de mercado é demasiado complexa para ser dirigida por instituições estatais, e o seu carácter espontâneo exige um "governo limitado".

Não deixa de ser irónico que em 1974 tenha dividido o Nobel da Economia com o economista social democrata e estudioso do desenvolvimentos Gunnar Myrdal, oriundo de uma cultura política escadinava que mantinha sólidos regimes democráticos e que estava nos antípodas do seu co-premiado.

Os críticos de Hayek não deixaram de sublinhar a instrumentalização activa desta obra nas guerras culturais anti-socialistas e anticomunistas da Guerra Fria. A edição resumida da obra pelas então famosas Selecções do Reader"s Digest, baluarte do anticomunismo conservador cristão norte-americano, da qual foram distribuídos milhões de exemplares, foi sempre apontada como um exemplo.

A intervenção política de Hayek, sempre pessimista sobre as infiltrações da esquerda social-democrata na dinâmica cultural anticomunista nas duas primeiras décadas da Guerra Fria, foi legitimando esta instrumentalização. Mesmo no quadro das organizações de mobilização cultural de iniciativa norte-americana, ciosas de atrair segmentos dos trabalhistas britânicos e sociais-democratas alemães, Hayek desconfiava. Em 1955, no Congresso for Cultural Freedom de Milão, quando Mikael Polanyi afirmou que a intervenção do Estado pode não enfraquecer a liberdade, perante a simpatia dos delegados trabalhistas, Hayek interrogou-se de imediato se o objectivo do Congresso não seria o de enterrar a liberdade em vez de a celebrar.

Por outro lado, os hayekianos foram-se constituindo nos círculos intelectuais como uma variante extrema da direita liberal e libertária. Com a activa participação do seu fundador, a Mont Pelerin Society continua a ser um activo pólo intelectual e político do seu pensamento. Como afirma a sua declaração de princípios, "ainda que não tenham uma interpretação comum das suas causas ou consequências, vêem o perigo na expansão do governo, nomeadamente do Estado providência, nos sindicatos e monopólios empresariais, e na ameaça da inflação". Não se pode dizer que os herdeiros tenham interpretado mal o mestre.

A primeira edição portuguesa foi da iniciativa de Orlando Vitorino, um filósofo português que não era propriamente um amigo da social-democracia. A presente edição tem a vantagem de ter um prefácio de João Carlos Espada, talvez o maior estudioso de Hayek em Portugal, tendo realizado um tese de doutoramento em Oxford sobre este e Raymond Plant. Goste-se, como o seu prefaciador, ou não, este foi um dos livros mais marcantes da segunda metade do século XX.

Sugerir correcção