Saber e poder Keynes e Bretton Woods

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As soluções inspiradas por Keynes e que foram adoptadas em Bretton Woods tiveram resultados positivos Bettmann/CORBIS

Keynes demonstrou que não há só uma resposta para as crises económicas e que a solução depende da relação entre os interesses e os poderes. E, na crise actual, não existe uma sintonia entre os principais centros de poder a nível internacional

Se John Maynard Keynes (1883-1946) é o maior economista do século XX, isso acontece porque foi quem melhor compreendeu o funcionamento da economia internacional a seguir à Pax Britannica do século XIX, e não por qualquer eventual influência na política económica. Aliás, o Keynes mais importante, mesmo teoricamente, não é aquele em que o investimento público do New Deal ou da Europa da CEE se apoiou, mas sim aquele que nos ensinou que a sã economia internacional de um mundo industrializado, democrático e aberto é aquela em que a troca de bens e de ideias - de todos - é mais importante do que a sanidade financeira de alguns. Vejamos o que ele nos ensinou, para depois repararmos no que ele tentou fazer, e concluir, nos dias de hoje, sobre os ensinamentos da relação entre sabedoria e poder.

O bom funcionamento da economia internacional contemporânea depende crucialmente de um quadro financeiro eficaz, que providencie os recursos para o desenvolvimento das trocas internacionais e do investimento à escala global. Como exportar ou importar soja do Brasil, automóveis da França ou gás da Rússia sem financiamento ou investimento internacionais? Todavia, historicamente, o mundo financeiro tem dificuldades em encontrar o seu equilíbrio, sobretudo quando as instituições que o enquadram são fracas. A economia internacional precisa de quem tome conta das finanças, caso contrário entra rapidamente em desequilíbrio e, por vezes, em colapso. A moeda que paga as exportações, qualquer que ela seja, tem de ser credível, o que implica que os países que a emitem têm de estar bem financeiramente, e coordenados entre si.

À medida que o mundo se industrializou, aumentou a circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais, o que implicou crescentes necessidades de financiamento, ou seja, um papel cada vez maior para as finanças internacionais. Nem sempre, todavia, o crescimento que daí resultou foi acompanhado eficazmente por instituições de supervisão e controlo político. Tal fez com que o sistema financeiro se tivesse tornado o campo mais crítico do desenvolvimento da economia internacional. Esse desfasamento foi particularmente sentido no século de Keynes, que foi também o das duas grandes guerras mundiais.

A lição de Keynes sobre o funcionamento da economia mundial diz-nos que o sistema financeiro é crucial, mas não é o mais importante e que tem de ser rapidamente posto na ordem quando entra em crise. Na ocorrência de desequilíbrios financeiros, o mais importante é resolvê-los prontamente para que o resto da economia se recomponha. Em muitas ocasiões isso pode significar que os detentores de capital assumam perdas que, todavia, deverão ser ulteriormente recompensadas pela mais rápida restauração económica. O corolário dessa lição é que a excessiva preocupação com ganhos ou perdas do sistema financeiro pode levar ao atraso das soluções e a maiores perdas para todos.

Isto não é apenas teoria, mas também fruto da observação das consequências do fim da estabilidade internacional do padrão-ouro, da paz dominada pelo império britânico, do equilíbrio de poderes entre a Alemanha e o resto da Europa e das duas guerras mundiais e várias crises económicas, financeiras e políticas que se seguiram. E Keynes esteve no epicentro da acção, uma vez que participou no Congresso de Versalhes de 1919, e a Conferência de Bretton Woods de 1944, em ambos os casos em representação oficial. A comparação dos dois eventos mostra como as mesmas causas podem ter efeitos diferentes, e serve de campo de análise para ver o que verdadeiramente importa na economia internacional.

Em 1919, as finanças internacionais estavam profundamente transtornadas pelos efeitos da Primeira Guerra Mundial que, ao interromper o comércio e os investimentos, mudou a economia global. A guerra trouxe também o pedido de reparações financeiras por parte dos aliados à Alemanha. Um pedido legítimo, mas contraproducente, mostrou Keynes, por impedir a recuperação dos mercados internacionais. Os pagamentos alemães não foram os únicos problemas, já que o período foi marcado por políticas de contracção económica, em quase todo o mundo ocidental, para contentamento dos defensores do regresso à - falsa - disciplina financeira do padrão-ouro. Felizmente que a Grã-Bretanha e os Estados Unidos se libertaram a tempo dessas "algemas de ouro", garantindo economias mais fortes que tanta importância viriam a ter na derrota do nazismo.

O peso dos EUA

Entre Versalhes e Bretton Woods, as condições mudaram dramaticamente e, em 1944, a voz do economista foi finalmente ouvida. Embora não se tenha feito tudo o que ele queria, o resultado foi claramente satisfatório e ultrapassou muitas das expectativas que então se colocaram à capacidade de recuperação da economia internacional.

Os Estados Unidos estiveram no centro das decisões tomadas em 1944, seguramente por causa do peso que tinham na esfera internacional. É por isso necessário ligar as soluções encontradas aos interesses norte-americanos e à sua capacidade de os levar por diante. O contraste com o fim da guerra anterior é marcante. Em 1919, Keynes apenas representava ideias que seriam porventura favoráveis à Grã-Bretanha, que havia perdido uma grande fatia do seu poder na esfera internacional. Para além disso, sem a influência britânica ou norte-americana, dominaram então o poder francês e os interesses de curto prazo do pagamento das reparações de guerra.

A solução de Bretton Woods passou por três elementos: o perdão da dívida de guerra da Alemanha; a disponibilidade de financiamento por parte dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha ao restabelecimento das finanças internacionais; e a criação de instituições internacionais capazes de coordenar a nova ordem financeira internacional. Keynes quis mais, e o plano ficou mais perto do que o negociador norte-americano, Dexter White, desenhou. Todavia, as diferenças, embora importantes, não ficaram na História. E Bretton Woods prosseguiu, pois logo a seguir veio o Plano Marshall e a criação da primeira organização internacional de cooperação económica, a OECE (futura OCDE) e, de certo modo, os primeiros passos da integração europeia. As ideias fundadoras de Keynes e o interesse do Governo britânico que lhes deu palco associaram-se ao interesse norte-americano, numa rara espiral de sucesso a bem da economia internacional.

Um balanço positivo

Claro que nem tudo correu sobre rodas nos anos que se seguiram e em várias circunstâncias as instituições de Bretton Woods serviram mais a causa dos interesses nacionais, nomeadamente dos Estados Unidos, do que os interesses da economia internacional. Todavia, em comparação com o que aconteceu desde que o sistema chegou ao fim, em 1971, são mais as razões para fazer um balanço positivo do que negativo. Havendo dúvidas, elas que se apaguem com a análise comparada dos anos 1930 e 1960 (e 2010).

E cabe perguntar, como é que tal aconteceu? Foram as ideias, foi o poder da razão intelectual, foi Keynes? Foram as circunstâncias? A resposta não virá só de um dos lados, naturalmente, mas o importante é saber qual foi o lado dominante.

Assim, para compreender o sucesso de Bretton Woods é preciso compreender a sua relação com os interesses norte-americanos. Essa equação levou algum tempo a ser desvendada, uma vez que muita campanha política se meteu pelo caminho. Todavia, a verdade é que os Estados Unidos não podiam admitir que a economia alemã se afundasse, como acontecera três décadas antes, pelo que tudo fizeram para a cobrir de fundos e reabrir os mercados para as suas exportações industriais. Afinal, o pano de fundo era o já clima de Guerra Fria.

A lição de Bretton Woods não é sobre o poder das ideias. É sobre o poder dos interesses. Ou, melhor, sobre, simplesmente, o poder. Compreender o que então se fez implica saber quem mandou, quando, porquê e como. As crises, como tudo o resto, nunca têm uma só solução e implicam sempre opções, ao contrário do que o poder muitas vezes pretende fazer crer. A história das duas crises em que Keynes foi protagonista mostra-nos que a solução encontrada dependeu da relação de interesses, da relação de poderes. É uma lição extremamente útil para os tempos que correm que, afinal, são a causa última desta revisitação.

Ao aplicarmos essa lição à actual crise, somos obrigados a analisar quem está nos principais comandos das soluções que estão há muito em cima da mesa e verificamos que há de novo uma grande falta de sintonia entre os vários intervenientes, entre as várias forças de poder. São várias as diferenças, mas talvez a mais importante seja a diferença entre a União Europeia e, em particular, a zona euro, e o resto do mundo avançado, incluindo os Estados Unidos, a Grã-Bretanha ou o Japão. Claramente, na zona euro funciona a vontade do gigante credor que é a Alemanha, enquanto no resto do mundo funciona a vontade do gigante devedor que são os Estados Unidos. Não admira, portanto, que os interesses financeiros tenham ganho tanto espaço.

Keynes fala-nos, claro, de poder. Fala-nos do poder dos bancos e restantes instituições financeiras, do poder das multinacionais, mesmo das benévolas, do poder das pessoas envolvidas no comércio internacional, do poder dos produtores de bens ou serviços que circulam na economia internacional, ou do poder dos investidores, isto é, dos aforradores, assim como dos consumidores. E fala-nos ainda do poder das nações. A escolha das políticas ou das soluções depende em larga medida da distribuição e força relativa dessas várias formas de poder. Se, em tempo de crise, quem manda são bancos, multinacionais ou potências credoras, interesses políticos imediatos, a urgência da solução financeira comandará. Se quem manda são os eleitores, os consumidores, o gosto pela circulação de bens e ideias, a solução financeira será menos prioritária. Embora a divisão não seja clara, uma vez que os indivíduos e as instituições não são grupos simples, a verdade é que ela aparece recorrentemente.

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